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terça-feira, 16 de novembro de 2010

vinte de novembro

Política e Etnia:
Reflexões sobre a História da África e Quilombos em Alagoas
Apresentação:
Com a proposta de gerar reflexões sobre a data comemorativa do 20 de novembro, professores da UFAL envolvidos em projetos ligados a questões étnicas, organizaram três dias de debates no Pólo de Palmeira dos Índios. Geralmente o 20 de novembro, data em que se comemora a consciência negra, marcada pelos eventos ocorridos em Palmares no século XVII, não é muito bem compreendido em sua profundidade. Visando esclarecer melhor esta data simbólica, constituída a partir de uma resistência histórica, na semana que antecede o 20 de novembro, dias 16, 17 e 18 estaremos recebendo a visita para discussão dialógica de pesquisadores, professores e quilombolas.
Programação:
Dia 16 de novembro de 2010
- Etnias africanas e relação com o Brasil - 9h:00min
Msc. Clébio Correia - Vice-reitor da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL)
- Quilombos em Alagoas - 10h:30min
Prof. Zezito de Araújo - Professor de História da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Dia 17 de novembro de 2010
- Vozes ativas: realidades das comunidades quilombolas - 9h:00min
José Preto e Nenem - Lideranças da Comunidade Guaxinim - Cacimbinhas/AL
- Considerações sobre o 20 de novembro - 10h:30min
Saulo Luders Fernandes e Gérson Alves da Silva Jr. - Professores de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Dia 18 de novembro de 2010
- Reflexões a partir de algumas representações de negros e negras na literatura brasileira. 9h:00min
David Lopes da Silva - Professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

vinte de novembro

RUBEM ALVES

"Crioulinha..."

UMA DAS MEMÓRIAS felizes que tenho de minha infância me leva de volta à escola. Eu estava no terceiro ano primário. Era a aula de leitura. Não, não era aula em que líamos para a professora ouvir e corrigir. Ao contrário, era a professora que lia para nos deliciar. Foi assim que aprendi a amar os livros. Não aprendi com a gramática.
Dizem que os jovens não gostam de ler. Mas como poderiam amar a leitura se não houvesse alguém que lesse para eles? Aprende-se o prazer da leitura da mesma forma como se aprende o prazer da música: ouvindo. A leitura da professora era música para nós.
A professora lia e nós nos sentíamos magicamente transportados para um mundo maravilhoso, cheio de entidades encantadas. O silêncio era total. E era uma tristeza quando a professora fechava o livro. "O Saci", "Viagem ao Céu", "Caçadas de Pedrinho", "Reinações de Narizinho". Esses eram os nomes de algumas das músicas que ela interpretava. E o nome do compositor era Monteiro Lobato.
Mas agora as autoridades especializadas em descobrir as ideologias escondidas no vão das palavras descobriram que, por detrás das palavras inocentes, havia palavras que não podiam ser ditas. Monteiro Lobato ensina racismo. E apresentam como prova as coisas que ele dizia da negra Tia Anastácia...
A descoberta exigia providências. Era preciso proibir as palavras racistas. Monteiro Lobato não mais pode frequentar as escolas...
Assustei-me. Senti-me ameaçado. Fiquei com medo de que me descobrissem racista também. Tantas palavras proibidas eu já disse.
É preciso explicar. Naqueles tempos, tempos ainda com cheiro da escravidão, havia um costume... As famílias negras pobres com muitos filhos, sem recursos para sustentá-los, ofereciam às famílias abastadas, brancas, para serem criados e para trabalhar. Assim era a vida. Foi assim na minha casa. Veio morar conosco uma meninota de uns dez anos, a Astolfina, apelidada de Tofa. Escrevi sobre ela no meu livro de memórias "O Velho que Acordou Menino". Cuidou de mim, dos meus irmãos, e morou conosco até se casar. Acontece que, ao contar sobre ela, eu usei uma palavra que fazia parte daquele mundo: "crioulinha". Era assim que se falava porque essa era a palavra que fazia parte daquele mundo. Imaginem que, obediente à "linguagem politicamente correta", eu, hoje, tivesse escrito no meu livro "uma jovem de ascendência afro"... Não. Esse não era o mundo em que a Astolfina viveu.
As palavras são a carne do mundo. Não podem ser substituídas por outras, ainda que mais verdadeiras, ainda que sinônimas. É preciso dizê-las como foram ditas para que o mundo que foi fique vivo novamente. A história se faz com palavras que faziam parte da vida. Aí, então, se pode explicar, como nota de rodapé: "Era assim. Não é mais...".
Estou com medo de que as ditas autoridades descubram que usei a palavra racista "crioulinha" para me referir àquilo que, hoje, seria "uma jovem de ascendência afro".
Estou, assim, tomando minhas providências. Para que não coloquem meu livro no "Índex" vou apagar a palavra "crioulinha" do texto e, sempre que precisar me referir à Tofa, direi que ela era uma governanta suíça e ruiva, uniformizada de branco e touca, para evitar que fios de cabelo caíssem na comida... Assim, meu livro purificado do racismo poderá frequentar as escolas...

(Folha de SP, 16/11/2010)