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domingo, 1 de maio de 2011

divagações adversas

Bar ruim é lindo, bicho
Por Antonio Prata

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio ruins.
Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de 150 anos. (Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de 150 anos, mas tudo bem).
No bar ruim que ando freqüentando nas últimas semanas o proletariado é o Betão, garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas acreditando resolver aí 500 anos de história.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do garçom, com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de literatura.
"Ô Betão, traz mais uma pra gente", eu digo, com os cotovelos apoiados na mesa bamba de lata, e me sinto parte do Brasil.
Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte do Brasil, por isso vamos a bares ruins,que tem mais a cara do Brasil que os bares bons, onde se serve petit gateau e não tem frango à passarinho ou carne de sol com macaxeira que são os pratos tradicionais de nossa cozinha.
Se bem que nós, meio intelectuais, quando convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit gateau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.
A gente gosta do Brasil, mas muito bem diagramado. Não é qualquer Brasil.
Assim como não é qualquer bar ruim.
Tem que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção de carne de sol, a gente bate uma punheta ali mesmo.
Quando um de nós, meio intelectuais, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio intelectual, meio de esquerda freqüenta, não nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.
Porque a gente acha que o bar ruim é autêntico e o bar bom não é, como eu já disse.
O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou menos gostosas.
Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas, cineastas e universitários e nesse ponto a gente já se sente incomodado e quando chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual, nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e universitários, a gente diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que jogavam dominó.
Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV.
Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevete e chinelo Rider.
Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico.
E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.
Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os que entendem a gente e os que não entendem.
Os que entendem percebem qual é a nossa, mantém o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam em 50% o preço de tudo.
Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato.
Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae.
Aí eles se fodem, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão brasileira, tão raiz.
Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda, no Brasil!
Ainda mais porque a cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres estão todos de chinelo Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gateau pelos quatro cantos do globo.
Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda, como eu que, por questões ideológicas, preferem frango a passarinho e carne de sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca mas é como se diz lá no nordeste e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, achamos que o nordeste é muito mais autêntico que o sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é mais assim Câmara Cascudo, saca?).
- Ô Betão, vê um cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?
*

gregório de matos


A sátira gregoriana possui um caráter de contestação imanente que acontece em duas vias: cultural e político-social. Contestação cultural expressa na linguagem torpe que adota visando ultrajar, impactar e agredir quando nomeia os órgãos sexuais e o ato sexual, recurso esse proveniente do estilo baixo de gêneros cômicos. O riso amoral provocado pela sátira de Gregório, com o uso de suas obscenidades e palavrões, tem um efeito inofensivo e prazeroso, afinal. A sua irreverência é mero aproveitamento de regras retóricas existentes, que a sátira barroca, enquanto comédia de punições, obedece, recorrendo à desqualificação do satirizado, à defesa da ordem e à defesa da posição hierárquica.
Por sua vez, concentra a contestação política-social enquanto integrante insatisfeito que é, da pequena nobreza luso-baiana de senhores de engenho em declínio. Não se pode extrair da produção gregoriana uma contestação político-social desinteressada, mas uma revolta pela situação que lhe é imposta à medida que lhe afeta a decadência com o fim da política protecionista sustentada pela coroa portuguesa, que favorecia essa nobreza local, mas que passou a ser-lhe nociva posteriormente, quando D. João IV alia-se aos ingleses, privilegiando os comerciantes estrangeiros (abrindo a barra de Salvador aos seus navios) e alguns latifundiários de maior calibre. Por esse prisma, a reação de Gregório é individualista, manifestando-se contra o mercantilismo progressista que “produzia” sua decadência como aristocrata. Eram-lhe mais convenientes as instituições e antigos valores protecionistas praticados pela metrópole. Repudiava assim, tanto a atividade mercantil quanto o trabalho manual, deixando transparecer o preconceito ao classificar os judeus e os mestiços como usurpadores dos postos e direitos que julgava exclusivos dos “homens bons”, brancos, entre os quais incluía-se.
(Laeticia Jensen)

A sátira gregoriana possui um caráter de contestação imanente que acontece em duas vias: cultural e político-social. Contestação cultural expressa na linguagem torpe que adota visando ultrajar, impactar e agredir quando nomeia os órgãos sexuais e o ato sexual, recurso esse proveniente do estilo baixo de gêneros cômicos. O riso amoral provocado pela sátira de Gregório, com o uso de suas obscenidades e palavrões, tem um efeito inofensivo e prazeroso, afinal. A sua irreverência é mero aproveitamento de regras retóricas existentes, que a sátira barroca, enquanto comédia de punições, obedece, recorrendo à desqualificação do satirizado, à defesa da ordem e à defesa da posição hierárquica.
(João Adolfo Hansen)

A sátira barroca produzida na Bahia não é oposição aos poderes constituídos, ainda que ataque membros particulares desses poderes, muito menos transgressão liberadora de interditos morais e sexuais. O receptor dos poemas geralmente os lê movido do interesse atual.
(João Adolfo Hansen)

A fala indígena é rotulada de “torpe”, enquanto o sangue dos caramurus é considerado sangue de tatu, um animal de casco grosso e que se arrasta pelo chão. Ao invés da exaltação da mestiçagem, há um absoluto desprezo por ela. Como a população do país tinha diversas origens raciais, Gregório optava pela minoria de cepa lusitana como predestinada a ter a posse da terra e a governar, contra uma eventual pretensão da elite nativa em assumir o comando. Essa opção exclui a possibilidade de classificar Gregório de Matos como autor “popular” e modelar para constituir a base de um sistema “brasileiro”. Ele é conveniente a uma postura aristocrática, de ascendência lusa, racista.
(Flávio Kothe)

Esse veio de "comicidade", de "irreverência" popularesca, o vezo da "piada devastadora", enfim, a irrupção do riso amoral e compulsivamente desreprimido, parece ter sido o aspecto que Antonio Candido, num ensaio divisor de águas em relação à sua prática historiográfica (o fundamental ''Dialética da Malandragem'', 1972), tomou como parâmetro para estabelecer a sincronia entre a sátira de Gregório e os romances-invenções dos dois Andrades, no âmbito do modernismo que se pode denominar, globalmente, "antropofágico". Esse o "gaio excesso" (Bakhtin) que Hansen desconhece, quando reduz a ''vis comica'' do destemperado baiano a uma efusão maledicente inócua, mera atualização de estilemas retóricos disponíveis, uma vez que —postula— a sátira barroca, "pendente comédia de punições, obedece a regras precisas", estando, pois, "prevista institucionalmente" e ligando-se ademais, pela "desqualificação" do satirizado, à "defesa da ordem" e à "defesa da posição hierárquica".
(Haroldo de Campos)

                Que significa hoje uma prática do barroco? Qual o seu significado profundo? Tratar-se-á de um desejo de obscuridade, de um gosto pelo esquisito? Arrisco-me a defender o contrário: ser barroco hoje significa ameaçar, julgar e parodiar a economia burguesa, baseada numa administração avarenta dos bens; ameaçá-la, julgá-la e parodiá-la no seu próprio centro e fundamento: o espaço dos signos, a linguagem, suporte simbólico da sociedade e garantia do seu funcionamento através da comunicação. Dilapidar da linguagem unicamente em função do prazer – e não como pretende o uso doméstico em função da informação.
(Severo Sarduy)