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quarta-feira, 2 de março de 2011

O papa e a morte

DENIS ROSENFIELD

O papa morreu dignamente em seus aposentos apostólicos. A sua agonia foi seguida por milhões de fiéis em todo o mundo, sem que se saiba, ao certo, as condições em que ocorreu a sua morte. Os assuntos do Vaticano são sempre cercados de sigilo.

Indicações, porém, foram dadas de várias doenças que lhe acometeram durante os últimos anos, quando as suas internações hospitalares começaram a ficar freqüentes. A sua saúde foi se deteriorando, embora a sua força o fizesse sair de cada uma dessas situações. Contudo, nessa sua última internação, ele parece ter tido consciência de seria efetivamente a última, restando-lhe a escolha entre a morte hospitalar e a morte em seus aposentos, com as pessoas que lhe eram próximas.

Diante da morte iminente, uma questão se colocou: como deveria ele terminar os seus dias? Deveria ele os tentar prolongar artificialmente graças aos modernos instrumentos científico-tecnológicos? Deveria ele se submeter a essa forma de arbítrio humano? Será ela a vontade de Deus? A forma de encarar a morte e o modo mesmo de morrer tornaram-se questões de extrema atualidade depois do longo sofrimento _15 anos_ de uma americana que vivia vegetativamente. As opiniões mais divergentes e acirradas se fizeram presentes.

Na prolongação artificial da vida, a ação humana se torna uma espécie de árbitro último, pois o processo biológico, por si só, já está esgotado. Sob um registro teológico, poder-se-ia dizer que a vontade de Deus se faz através de um processo que encontra a sua culminação natural na morte. Nessa perspectiva, os esforços humanos de prolongar artificialmente uma vida também poderiam ser considerados atos humanos gratuitos contra a vontade de Deus. Num certo sentido, pode-se ainda dizer que Deus quer o fim de cada um de nós, por termos a finitude como nosso horizonte próprio, por Ele desenhada. Ademais, Ele sinaliza o fim de cada pessoa através de um processo natural único de decadência biológica, que encontra o seu encerramento na falência de um ou vários de nossos órgãos. É lícito, portanto, afirmar que prolongar indefinida e artificialmente a vida de alguém é um ato "contranatura", contra a vontade de Deus, pois a natureza é sua obra.

João Paulo 2º parece ter tido plena consciência dessa confluência entre a liberdade de escolha e a vontade de Deus presente nos processos naturais. A liberdade de escolha está presente no ato de sair de um hospital e a ele decidir não mais voltar, sabedor que era de que seus dias estavam contados. Poderia ter ele ficado no hospital, utilizando-se de todos os recursos tecnológicos à sua disposição, potencializados ainda mais por se tratar do sumo pontífice. Meios não lhe faltariam. O que surpreende, contudo, é a renúncia a tais meios, a consciência de que sua vida terminava e ele entendia isso como sendo a vontade divina. O ato livre opera tendo como contexto a iminência da morte. Essa, por sua vez, é compreendida como a passagem para um outro mundo, como a conseqüência natural, normal, de um processo que chega ao fim. [...] (Folha de São Paulo, 06/04/2005)

A boa morte de João Paulo 2º

MARCELO LEITE

Não fosse este espaço dedicado à ciência e áreas adjacentes, como vida e ambiente, a vontade era de escrever sobre essa constrangedora campanha para "eleger" um papa brasileiro. Diante dela, até ateus se sentem tentados a exclamar: Meu Deus! Já não basta o sentimento de inferioridade por não ter Prêmio Nobel e Oscar, em breve o país poderá também sentir-se menor, possivelmente, por não abocanhar o Vaticano.

É diante da morte de João Paulo 2º, porém, que cabe parar e pensar. De sua vida já se disse tudo e mais um pouco, quando não o seu contrário. Da morte do papa também muito se falou, e uma das reflexões mais interessantes foi proposta quarta-feira na Folha pelo filósofo Denis Lerrer Rosenfield, do qual em geral tem sido mais fácil discordar. Tensionando um pouco seu argumento, seria possível dizer que, ao escolher morrer em seus aposentos, longe da tecnologia hospitalar, o papa terminou oferecendo um manifesto em favor da eutanásia.

Rosenfield escreve que a palavra não é apropriada para o passamento de João Paulo 2º, porque ele se deixou morrer. Ela está associada com a idéia de fazer morrer, como praticava o "Dr. Morte", Jack Kevorkian, condenado a pelo menos dez anos de prisão, em 1999, por participar de suicídios. Se fosse essa a noção predominante de eutanásia, ministrar uma dose letal de drogas para desencadear a morte de alguém, certamente a do papa nada teria a ver com isso.

Não é essa a eutanásia que está na ordem do dia, porém. Não se trata de Jack Kevorkian, mas de Terri Schiavo. Nos casos do papa e de Terri, era possível escolher entre realizar ou não intervenções para prolongar uma vida que, por seus próprios recursos, se extinguiria lentamente. A diferença estaria em que, supõe-se, João Paulo 2º tomou a decisão sobre si mesmo, ou dela participou, enquanto sobre Terri quem decidiu foi o marido.

Obviamente, trata-se de uma diferença enorme. É muito menos questionável, eticamente, uma pessoa decidir sobre a própria morte. Mas, e quando ela não pode fazê-lo, por que seria menos humano, ou menos piedoso, permitir que um ente querido tome a decisão por ela?

No caso Schiavo, conservadores e fundamentalistas cristãos cerraram fileiras em torno dos pais da moça, que queriam prolongar seu estado vegetativo. O argumento por trás da intransigência era que, assim como não competiria a seres humanos interromper a vida de um embrião (uma "pessoa humana", na óptica "pro-life"), tampouco seria permissível interromper a de um moribundo, por mais insustentável que fosse.

Outra forma de encarar a questão, paradoxalmente oposta mas não menos conservadora, é a sugerida no artigo de Rosenfield: caberia aos homens intervir com meios técnicos para tirar de seu curso um processo com desenlace fixado pelo desígnio divino (ou natural)? Quem responder que não, justificando com isso o direito de João Paulo 2º a uma morte piedosa, não deveria escandalizar-se tanto com o direito exercido por Michael Schiavo em nome de Terri. (Folha de São Paulo, 10/04/2005)