novo blog

sexta-feira, 25 de março de 2011

professor cavalcante

O professor Cavalcante era formado em Letras, e dava, com meia dúzia de ses colegas, as principais aulas do curso de Filosofia da Unicamp, desde seu início, em 1988. Ele não pedia mais que isso como avaliação: uma página de texto, traduzido diretamente do grego, no segundo período de curso. Ele corrigiu essa página, e na seguinte encontrou tantos defeitos que deve ter me aprovado (provavelmente com 6,0 - a página de rosto eu perdi, mas eu sempre tirava 6,0 com ele) por ter feito apenas o trecho que ele havia determinado na semana anterior. Nós não utilizávamos as traduções para o português, mas havia a de carlos alberto nunes e da universidade federal do pará. Ele nunca pedira para ler o que íamos, individualmente ou em grupos de estudo, fazendo. Acompanhava-nos à distância, nossa atenção, nossas perguntas em classe, nossa freqüência, toda semana.

Não havia Diário de Classe, caderneta, registro de freqüência. Acho que na primeira aula ele levou a listagem dos alunos, para brincar com os nomes dos alunos e suas etimologias. Nunca mais se referiu a qualquer um de nós diretamente pelo nome, durante o curso, exceto a um ou outro, que mereciam dele essa distinção e louvor.

Entre o primeiro e o segundo períodos, mudou a forma de ler o banquete: na primeira, falava de pé, movimentando-se no fosso do anfiteatro do IFCH, os textos (as traduções em português - a dele, nos pensadores - e o texto original). Ele falava sem segurar nenhum papel, andando de um lado para o outro do anfiteatro, dominando a platéia sempre atentíssima como era de ser devido ao respeito que seu saber e sua barba branca de ‘barbapapa’, como diria marcelo, emanavam, e, por outro lado, dé, incomodando quem sentava nas primeiras fileiras que pareciam estar acompanhando uma partida de tênis.

Numa das vezes em que estive a sós com ele, foi porque suas aulas eram na sexta de manhã cedo, a primeira, senão a única aula quase da manhã no campus (sexta era um dia morto da unicamp, no início da década de 90. Todas as aulas aconteciam de terça à quinta, com uma série de festas na quinta, nos diversos institutos. Quase todos os alunos, na quinta, oficialmente, iam às festas da unicamp, e muitas vezes nas quartas também, chegando de ressaca feia para a aula da quinta. Fora os bêbados de carteirinha, que evidentemente eram maioria absoluta, já que, além da cerveja vendida em todas as cantinas, de vez em quando rolava um garrafão de pinga que ia passando pelas mesas do bar. Os professores sempre bebiam junto com os alunos, tanto com o seu séquito, como com alunos desconhecidos, que por lá estivessem também, ou mesmo com aqueles que moravam no bar, como Ubaldo, Zedu... Falei do Baldo e do Zedu até ia esquecendo do dia, de manhãzinha fria e úmida de orvalho, o prof. Cavalcante me chamou no carro dele (tinha só o carro dele ainda no estacionamento do ifch, do lado da cantina, era 91 ou 92), um uno azul, que gerava piadas parmenideanas, para perguntar se tinha muita gente já no prédio (a aula era no segundo andar, numa sala grande com poucos alunos). Eu disse que não, que éramos os primeiros a chegar (algumas vezes eu chegava bem cedinho, pra curtir o amanhecer no campus, no bosque de eucaliptos da economia), que tava tudo bem, e ele mostrou os pés com sapatos trocados, um azul e o outro marrom. Disse que saíra de casa ainda escuro (morava em Vinhedo) e não quis acender a luz para não acordar sua esposa. Ri junto com ele, e fomos para a sala de aula. Houve ainda outra vez em que conversei a sós com ele.

Na Filosofia os caras marcavam horários alternativos (além do orlandi e do roberto romano, que disputavam as terças e quintas), o fausto castilho começava às 14 da sexta, e ia até os funcionários expulsarem ele e os alunos, no começo da noite.

Aliás, alguns desses professores defendiam que o ensino público da estaduais de são paulo não deveriam abrir cursos noturnos, mas não me lembro hoje quais. Seu argumento principal era que o ensino noturno iria necessariamente causar uma piora em relação ao ensino público que havia então, do final dos anos 80 até o início dos 90. Lembro-me muito claramente do Fausto Castilho defendendo, admiradíssimo, o Fernando Collor, no dia seguinte ao confisco das poupanças feito pela sua equipe econômica comandada por Zélia Cardoso de Mello. Foi o início do meu curso.

Fausto gravava sua aula em fita cassete, por ideia de seu grupo de alunos, dentre eles o Pardal. Sim, havia os grupos de alunos em torno de um professor. Na época, éramos quase seguidores de nossos mestres. Cada um tinha o seu, e respeitava muito o dos colegas. Havíamos uns, mais perdidos, que não tomamos no começo ou no curso inteiro, um professor como mestre, mas sim alguns colegas. Eu seguia o Pardal e o Lucas Angioni. Leandro Abel era violinista em Americana, teve formação religiosa liberal, e por isso sabia já muito bem o Latim, e fazia o Grego conosco. Cristiano Rezende eu conhecia do colégio, ele era um ou dois anos mais novo que eu, confessei já a ele que não consigo me lembrar dele lá na Escola Comunitária de Campinas, e ele explicou que era totalmente apagado no colégio, um dia só que teve uma viragem e aprendeu a falar o que pensava. Cristiano, depois, foi fazer o mestrado na USP, com Marilena Chauí, sobre Espinosa.

Houve sempre o boato, e que sempre pareceu ser mais que apenas boato, que Romano e Marilena eram namorados, na época de estudantes, e que ambos eram os orientandos mais queridos de Maria Sylvia de Carvalho Franco, a eminente autora da clássica tese sobre Homens Livres na Ordem Escravocrata e também professora da Filosofia da Unicamp em 90. Em algum momento da história, Romano e Maria Sylvia começaram a namorar, se casaram e continuavam indo juntos, de carro, de um bairro chique de são paulo, décadas depois, de onde moravam, para a universidade estadual de campinas, onde trabalhavam. Tinham aulas acho que nas quintas, de manhã (obrigatória, de 4 horas) e à tarde (eletiva / pós, de no mínimo 4 horas). Iam apenas uma vez por semana ao campus, mas utilizando carro próprio. Não creio que naquela época houvesse algo como tíquetes de combustível para ressarcir as viagens. Ele ganhava o mesmo que eu ganho hoje, uns 5 mil reais (fora o do governo). Mas isso faz 20 anos de inflação. Eles moravam talvez no Brooklin de SP, e nosotros todos estávamos na periferia campineira. E na periferia também de sistemas de poder, embora fôssemos todos de classe média ou média alta. Ainda assim, todos percebíamos uma aura naqueles professores que se perdeu talvez irremediavelmente, apesar dos esforços de nós todos, hoje.

Lembro-me de uma das pouquíssimas reuniões do departamento da Filosofia de que participei, silenciosamente, quando estava já na segunda metade do curso (que, para mim, durou do primeiro semestre de 1990 ao segundo semestre de 1996). A pauta era a contratação de um professor efetivo para o departamento. Havia dois candidatos: um do grupo de Filosofia (Política, Metafísica, História da Filosofia Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea) e o outro, da Lógica (Filosofia Analítica. Não me lembro como votou Arley Moreno nesse dia). A votação ia ser empate, 5 a 5, e o professor Benjamin pediu para alguém ir correndo (foi um professor, se bem me lembro, e não um de nós, que estávamos acompanhando o processo) chamar um professor que estava dando aula naquele momento (as reuniões aconteciam de vez em quando, às quartas à tarde. Francisco Benjamin de Souza Netto (com dois tt) foi meu orientador, no início do mestrado em filosofia, em 1997. O projeto era sobre Platão, a poesia em Platão, a censura aos poetas na República em Platão. Eu queria ler aqueles dois volumes, que haviam recebido a orientação recente do doutorado, mas não consegui avançar muito na leitura. É certamente uma das leituras mais claras deste problema na República, eu nem sabia direito quem eu era, quanto mais Homero. Ele me mandou ler o Íon, de Platão. Eu o li, lutando com o original grego, mas abandonei o curso.

As Bancas examinadoras constituíram alguns dos eventos acadêmicos mais educativos que houve na Academia, naquela época. Quando Hector Benoit, por exemplo, defendeu seu doutorado e foi acusado, na banca, de plágio por Maria Sylvia. Foi um dos ‘rachas’ profundos do Departamento. Não assisti às defesas de Hector nem de Benjamin, que ocorreram enquanto eu era graduando, embora eles fossem alguns dos mais respeitados professores de filosofia do brasil, e quase únicos então, sobreviventes da Ditadura Militar.

Fausto deu as boas-vindas a Collor, mas o correto era ser extremamente favorável ao PT. Praticamente todos defendiam publicamente o PT (apenas alguns sequelados como o giannotti da USP e outros defendiam Fernando Henrique, normalmente creio que mais por amizade pessoal e admiração, que necessariamente por ideologia.

Havia o Quartim, João Francisco Quartim de Moraes, autor de importantíssimos capítulos da história da esquerda armada no Brasil (ou algo assim), que ninguém da Filosofia lia. Uma vez, houve a história que Quartim teria dado tiros de revólver nos 4 pneus de um carro, que estava estacionado em cima da calçada, interrompendo o trâfego de pedestres, coisa que, na época (93, talvez), era muito comum. Muitos de nós éramos filhinhos-de-papai, que tínhamos o automóvel (eu não sabia dirigir, aprendi tarde) novinho para exibir nos gramados da Unicamp. Naquela época, foram cunhadas as expressões ‘mauricinho’ e ‘patricinha’, que não existiam quase no começo de 90, não na universidade, ainda mais se lembrados os remanescentes da década anterior.

Naquela reunião de Departamento, foi decidido que a vaga cabia, graças à estratégia de Benjamin, ao prof. Carlos Arthur, o maior medievalista, junto com o próprio Benjamin e uns outros três ou quatro, que conseguem ler filosoficamente textos de filosofia medieval, mesmo sendo cristãos e católicos. Benjamin, por exemplo, era quem guardava as chaves do Mosteiro de São Bento, em SP. Um dia, estávamos eu, Lucas, Cristiano, a classe toda, com nossas chaves à mostra, fazendo barulho com elas, contando quantas cada um carregava consigo, a da casa, uma outra que exigia uma explicação e chegou o Benjamin, nos pegando com as chaves na mão. Ele não ficou nem um pouco constrangido, muito menos demonstrou isso. Nós é que demoramos alguns minutos a mais, até chegar onde ele estava, no texto latino de Pedro Abelardo, provavelmente, a especialidade de Carlos Arthur. Essa aula foi em 92 ou 93, antes de tomarmos desejo de ver e até mesmo podermos participar silenciosamente das decisões políticas dos professores no departamento. A discussão sobre a vaga em aberto veio depois. (lsd)