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quinta-feira, 14 de abril de 2011

enciclopedia jagunça

YAUARETÊ

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Senhora do fogo

Maria Maria

onça verdadeira me ensina a ser realmente o que sou

põe a sua língua na minha ferida, vem contar o que eu fui

me mostra meu mundo

quero ser jaguaretê

Meu parente, minha gente, cadê a família onde eu nasci

cadê meu começo, cadê meu destino e fim?

para quê eu estou por aqui?

Senhora da noite

senhora da vastidão

ouvir pegadas e pegar

seguir a sina de sangrar pra se alimentar

tem de guerrear, lutar, matar para sobreviver

pois assim é a vida

Quem vem lá? É onça que já vem comer

quero ser a onça, meu jaguaretê

quero onçar aqui no meu terreiro

vou onçar sertão e mundo inteiro

já está na hora da onça beber o seu

vou dançar com a lua lá no céu

*

do cd que minha mãe me deu de presente, na defesa da tese: yauaretê



sereias

O SILÊNCIO DAS SEREIAS

Franz Kafka

Comprovação de que mesmo meios insuficientes, e até infantis, podem conduzir à salvação.

A fim de proteger-se das sereias, Ulisses entupiu os ouvidos de cera e mandou que o acorrentassem com firmeza ao mastro. É claro que, desde sempre, todos os outros viajantes teriam podido fazer o mesmo (a não ser aqueles aos quais as sereias atraíam já desde muito longe), mas o mundo todo sabia que de nada adiantava fazê-lo. O canto das sereias impregnava tudo – que dirá um punhado de cera –, e a paixão dos seduzidos teria arrebentado muito mais do que correntes e mastro. Nisso, porém, Ulisses nem pensava, embora talvez já tivesse ouvido falar a respeito; confiava plenamente no punhado de cera e no feixe de correntes, e, munido de inocente alegria com os meiozinhos de que dispunha, partiu ao encontro das sereias.

As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto: seu silêncio. É certo que nunca aconteceu, mas seria talvez concebível que alguém tivesse se salvado de seu canto; de seu silêncio, jamais. O sentimento de tê-las vencido com as próprias forças, a avassaladora arrogância daí resultante, nada neste mundo é capaz de conter.

E, de fato, essas poderosas cantoras não cantaram quando Ulisses chegou, seja porque acreditassem que só o silêncio poderia com tal opositor, seja porque a visão da bem-aventurança no rosto de Ulisses – que não pensava senão em cera e correntes – as tenha feito esquecer todo o canto.

Ulisses, contudo, e por assim dizer, não lhes ouviu o silêncio; acreditou que estivessem cantando e que somente ele estivesse a salvo de ouvi-las; com um olhar fugaz, observou primeiro as curvas de seus pescoços, o respirar fundo, os olhos cheios de lágrimas, a boca semi-aberta; mas acreditou que tudo aquilo fizesse parte das árias soando inaudíveis ao seu redor. Logo, porém, tudo deslizou por seu olhar perdido na distância; as sereias literalmente desapareceram, e, justo quando estava mais próximo delas, ele já nem mais sabia de sua existência.

Elas, por sua vez, mais belas do que nunca, esticavam-se, giravam o corpo, deixavam os cabelos horripilantes soprar livres ao vento, soltando as garras na rocha; não queriam mais seduzir, mas somente apanhar ainda, pelo máximo de tempo possível, o reflexo dos grandes olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas então; mas permaneceram: Ulisses, no entanto, escapou-lhes.

Dessa história, porém, transmitiu-se ainda um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astuto, uma tal raposa, que nem mesmo a deusa do destino logrou penetrar em seu íntimo; embora isto já não seja compreensível ao intelecto humano, talvez ele tenha de fato percebido que as sereias estavam mudas, tendo então, de certo modo, oferecido a elas e aos deuses toda a simulação acima tão-somente como um escudo.

Franz Kafka, 23 de outubro de 1917

sereias

"Assim a crítica posterior indaga sobre a verdade cuja chama viva continua a arder sobre os pesados troncos do passado e as leves cinzas da vida que se foi."

"O belo ensaio de Horkheimer e Adorno sobre o Iluminismo contém uma das mais conhecidas interpretações do mito das sereias, descrito no Canto XII da Odisséia. Nele os autores situam o dilema colocado para o homem ocidental pelo Esclarecimento: a alternativa de arrancar a existência à natureza, que exige atenção sempre alerta e voltada para o presente , e a tentação de voltar ao passado pela poesia, representada na narração homérica pelo canto das sereias. Odisseu, o herói sofrido, descrevem os autores, enrijecera sua identidade entre perigos, e quando a "maré do passado refluiu da roca do presente" e "um futuro nublado carregou o horizonte", Odisseu foi obrigado a trocar todos os sonhos por um só sonho: a volta à Ítaca natal. Seu passado está imerso no reino das sombras. Enquanto renuncia a se valer como conhecimento, fechando-se para a práxis, o prazer e a memória são tolerados. Mas o poder das sereias é forte: o da poesia aliada ao conhecimento, pois elas sabem de "tudo o que se passou na fértil terra". As sereias cantam a memória da qual Odisseu e seus companheiros foram protagonistas: "tudo o quanto argivos e troianos sofreram na arrasada Tróia pela vontade dos deuses." Mas a presença de espírito constante é uma exigência da realidade, única maneira de arrancar a frágil existência da dura natureza. Nenhum imigrante, nenhum desterrado, ninguém que luta pela sobrevivência, pode ser nostálgico: "a promessa do retorno é o engano por onde o passado captura o saudoso".
"Odisseu fora prevenido por Circe, a grande maga; e como Ulisses resistiu ao seu amor, Circe deu-lhe o poder de resistir às sereias. Dizem-nos Adorno e Horkheimer que a renúncia à sedução foi o preço que a humanidade teve de se infligir, as terríveis violências necessárias para o surgimento do homem iluminista, prático, alerta, cujos sonhos foram reduzidos ao sonho do futuro, como Odisseu, o herói errante. Esse é o caminho que todo homem deve refazer desde a infância. O caminho da civilização exige obediência e trabalho, sobre o qual a satisfação "reluz apenas como miragem, como beleza esvaziada de força". "Inimigo da morte e da própria felicidade", para Ulisses havia apenas duas soluções. A primeira Ulisses prescreve aos companheiros. Ele tapa-lhes os ouvidos com cera e manda remar obsessivamente. Só pode resistir à tentação quem não puder escutá-la. Saudáveis e concentrados, os trabalhadores, movidos pela necessidade, devem "olhar para frente e deixar para trás e para o lado o que ficou para trás e para o lado". Só "assim eles se tornam práticos". A outra saída é a escolhida por Ulisses: ele escuta, mas atado ao mastro, privado de força, de poder e de vontade. Quando gritou desesperadamente para que os marinheiros o libertassem, eles não podiam mais escutá-lo: os companheiros sabiam do perigo do canto, mas não de sua beleza. Eles obrigam o opressor a reproduzir a opressão na sua própria vida, porque Ulisses "não pode mais fugir de seu papel social". A memória é neutralizada na arte, e a arte é separada definitivamente da vida e da prática. O acorrentado ao mastro significará daí por diante a passividade do espectador, a imobilidade com que se assiste ao concerto, ao filme, ao drama, ao programa de TV, ao espetáculo, atado à cadeira, passivo - o grito apaixonado pela libertação é abafado pelo aplauso. Essa foi a vingança de Circe: a memória não é matéria de conhecimento, nem de prazer, nem de trabalho. Os que fazem não podem gozá-la, porque têm seus sentidos obstruídos pela violência, pela coação, pelo desespero da necessidade. O servo permanece subjugado, mas enreda o senhor nas malhas que o prendem." (A Escola, a Memória e o Mito das Sereias, por Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza, da Faculdade de Educação da USP)

contribuição ao debate da sustentabilidade

"Toda tentativa para quebrar a sujeição à dominação da natureza, ‘porque a natureza está quebrada’, penetra ‘cada vez mais profundamente na escravização da natureza’.

O amor comporta o abandono do amante ao amado e, conseqüentemente, um momento de não domínio por parte do sujeito. Contrapõe-se à lógica instrumental que exige que cada um tenha em suas ações atitude racional e calculada em relação à planificação das vantagens a serem conquistadas [...] A humanidade torna o homem triste, e a necessidade de amor, a necessidade do outro como única garantia de não-agressão, converte-se em melancolia."

(OLGÁRIA MATOS. “A melancolia de Ulisses: a dialética do Iluminismo e o canto das sereias”. In: CARDOSO, Sérgio (et al.). Os sentidos da paixão. SP: Companhia das Letras, 1987.)

grandes momentos da filosofia (adorno)

Não vejo como condenar que se seja desesperançado, pessimista, negativo no mundo em que vivemos. Mais limitados serão aqueles que se aferram compulsivamente ao otimismo do oba-oba da ação direta, para obter alívio psicológico. (ADORNO, Theodor. Entrevista à revista Der Spiegel, n. 19, 1969. Tradução de Gabriel Cohn. Publicado no Caderno ''Mais!'' da Folha de S. Paulo, em 31.08.2003.)