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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O que forma o elo social?

Renato Janine Ribeiro

O que constrói o elo social, o que faz existirem nossos vínculos? Está ficando cada vez mais difícil viver em sociedade, bem sabemos. Nossos tempos privatizaram muito do que era público. "A praça é do povo, como o céu é do condor": o verso de Castro Alves parece, hoje, estranho. Quem vai à praça? A praça, aliás, era já uma herdeira pobre da ágora, da praça ateniense, que não foi lugar do footing ou da conversa mole, mas da decisão política. A ágora era praça no sentido forte, onde as questões cruciais da coletividade eram debatidas e decididas.
Mas mesmo a praça, na acepção de espaço em que as pessoas se socializam, se enfraqueceu. É significativo que Roberto DaMatta, ao analisar a oposição entre o mundo doméstico e o público na sociedade brasileira, oponha à casa a rua, e não a praça. A praça favorece a circulação, no sentido quase etimológico, do círculo, da ida e vinda, do encontro e reencontro: quem se lembra do que se chamava footing nas cidades do interior (os rapazes e moças dando voltas na praça, uns no sentido do relógio e outros no contrário, de modo a se cruzarem seguidas vezes) sabe do que falo. Já a rua é caminho de ida sem volta. Fica-se na praça, anda-se na rua. Vai-se, sai-se.
Ou tomemos outro lado da mesma questão. Como puxamos assunto com um estranho? Alfred Jarry, o autor de Ubu Rei, dizia que um dia encontrou uma moça linda, na sala de espera de um médico. Não sabia como abordá-la – como iniciar a conversa. Sacou então de um revólver, deu um tiro num espelho que havia ali, voltou-se para ela e disse: “Mademoiselle, agora que quebramos ‘la glace’” (palavra francesa que quer dizer tanto o gelo quanto o espelho)... É óbvio que era uma brincadeira; a piada valia mais para ele do que a conquista amorosa; imagino a moça gritando, fugindo; mas a questão fica: como quebrar o gelo, como criar um elo?
Stendhal, no seu ensaio "A comédia é impossível em 1836", diz que os cortesãos, reunidos em Versalhes por Luís XIV, obrigados a ficar lá o dia todo, ou achavam assunto – ou morreriam de tédio. Assim, diz ele, nasceu a arte da conversa. Temas pequenos, leves, mas sobretudo agradáveis começaram a constituir um ponto de encontro de seus desejos e interesses. É nesse mesmo século XVII, segundo Peter Burke (A arte da conversação, Editora Unesp), que franceses, ingleses e italianos reivindicam a invenção da conversa como arte. Regra suprema: não falar de negócios ou trabalho. Regra suplementar: agradar às mulheres. A arte da conversa é uma retórica no dia-a-dia. Ela se abre até mesmo para uma dimensão segunda, que é a arte da sedução. Casanova era grande conversador e sedutor renomado.
Eis a questão: uma sociedade que se civiliza precisa de assuntos que sirvam de ponto de encontro para as pessoas, e sobretudo para os estranhos que assim entram em contato. No campo, conheço quase todos os vizinhos; na cidade grande, porém, a maioria é de estranhos. Sai-se do mundo rural quando se começa a conhecer o diferente, o outro – e a aceitá-lo. Isso se dá mediante a oferta de assuntos que abram uma conversa.
Daí, a importância de expressões que minimizam ou mesmo aparentemente humilham essa conversa mole, como o small talk, o papo furado ou a bela expressão "jogar conversa fora", que é muitíssimo sutil, porque dilapidamos palavras justamente para construir amizades, isto é, dissipamos nosso tempo, como num potlatch indígena, precisamente para criar o que há de melhor na vida.
Mas mudou o que dá assunto. Gosto de ver filmes norte-americanos dos anos 30 e 40, em preto e branco; um tema freqüente neles, tanto em Cidadão Kane quanto nos menos conhecidos, é o impacto da imprensa diária sobre as pessoas. São temas recorrentes o "furo" do repórter ou a notícia inesperada que suscita uma edição extra do jornal. E aí vemos as pessoas conversando a respeito, trocando palavras – diante da banca ou do jornaleiro – com perfeitos estranhos. A imprensa dava assunto. Ela permitia esse elo leve com o outro que, justamente por ser leve, é tão importante, porque acaricia nosso vínculo social.
Mas havia um pressuposto nisso: que toda a sociedade vibrasse ao toque de um só assunto. Havia temas de interesse universal. Podia ser a guerra, a fuga de um preso, uma condenação. Mas supunha-se que todos os cidadãos se interessassem por isso. Certamente isso nunca foi verdade. Porém, no horizonte, imaginava-se que um dia todos leriam jornal, e todos adotariam como agenda diária o leque de assuntos, da política internacional à nacional, dos faits-divers às variedades, que a imprensa fornece. Não foi assim. Caiu o número de leitores. Até no mundo acadêmico, conheço bons intelectuais que não lêem jornal.
E os interesses se segmentaram. Falou-se, uns anos atrás, em imprimir exemplares personalizados: você, ao assinar seu jornal, diria quais assuntos quer em destaque. Tecnicamente, é possível editar um exemplar do jornal que lemos, digamos, o Planeta Diário, diferente para cada um de nós, talvez sem grandes custos. Não haveria dois jornais iguais, pelo menos para os assinantes. O comum, a língua franca, a koiné ficaria para a venda em banca. Mas, se essa técnica não foi adotada, o resultado prático valeu. Pouquíssimos lêem o jornal de ponta a ponta. Ele não dá mais a linguagem comum para se ter assunto em comum.
Isso não quer dizer que precisemos, para falar com estranhos, voltar à tática de Jarry e atirar nos espelhos. Mas parece que tivemos duas conseqüências dessa mudança. A primeira é que hoje a televisão dá essa linguagem comum, mas para hoi polloi, os pobres ou os menos cultos. Sua linguagem é a das variedades, a do circo. Não é a da política. Perdura assim em nosso mundo uma língua franca, que permite o elo, mas um elo despolitizado.
A segunda é que, quanto mais culto for o público, provavelmente mais segmentado ele será. Estará diferenciado por seus interesses e gostos. É claro que na ante-sala de um cinema cult você pode puxar conversa sobre filmes de arte, mas num território sem marcas – o transporte coletivo, uma sala de espera – isso é improvável. Não é por acaso que esses lugares ofereçam à leitura revistas para quem não gosta de ler, como as de fofocas ou as de imagens. Diante do estranho, daquele cuja história desconheço, daquele que é opaco para mim, a melhor técnica para abrir uma conversa não passa pela cultura ou pela política, mas pelas variedades, pelos excessos – até mesmo pelo circo. Notem, aliás, que os pregadores da violência pelo rádio e pela televisão perderam a seriedade, tornando-se circenses. Talvez seja bom que Ratinho se leve hoje menos a sério do que no passado. Mas também mostra que a diversão tem um poder enorme, e que ele pode mais ao divertir do que ao atemorizar.
Começamos falando do elo social para mostrar como ele se foi despolitizando. No entanto, nosso engajamento na política exige que tenhamos elos com os outros. O elo forte da política depende dos elos leves do dia a dia. A conversa séria precisa da conversa mole. Para haver políticos que nos representem, precisamos todos ter amigos com quem convivemos. Políticos sem amigos podem aterrorizar, como foi o caso de Robespierre, que por sinal nas últimas décadas perdeu boa parte do que lhe restava, à esquerda, de popularidade. Ora, como fica a política quando os elos sociais se afrouxam ou saem da praça para entrar no picadeiro? Fica fraca. Fica difícil, sobretudo, dizer onde nos encontramos todos – onde é nossa ágora. E provavelmente isso é irreversível. Vivemos numa sociedade complexa, e nossas exigências são cada vez mais diferenciadas.
Isso é ruim, se temos como ideal a ágora como centro da cidade. Mas pode não ser tão mau, se pensarmos que nunca houve uma ágora que integrasse todos – nem em Atenas, onde se excluíam mulheres, escravos e não-atenienses. O que podemos ter hoje é uma pulverização de centros. A periferia prevalece. Há amizades via Internet, como as havia por telefone, que dispensam e talvez até excluam o encontro físico. A comunicação é segmentada, não se concentra no político, mas ocorre assim mesmo. Talvez precisemos nos habituar a elos fracos, leves, temporários. Não quer dizer que sejam maus. Continuam existindo elos fortes, os da intimidade, do amor, da grande amizade. Mas os elos que se abrem para o social mudaram de natureza: são mais fracos, porém mais numerosos do que antes. Precisamos nos acostumar à riqueza do efêmero.
(Revista Cult, novembro de 2004)