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domingo, 27 de março de 2011

platão, íão

“É o que me disponho a fazer, Íon, para explicar-te (apophainómenos) o que me parece ser a causa do que dizes. O dom de falares com facilidade a respeito de Homero, conforme concluí há pouco, não é efeito de arte (techné), porém resulta de uma força divina que te agita, semelhante (hósper) à força da pedra que Eurípides denomina magnética e que é mais conhecida (hoi polloi) como pedra de Héracles. Porque essa pedra não somente tem o poder de atrair anéis de ferro, como comunica a todos eles a mesma propriedade, deixando-os capazes de atuar como a própria pedra e de atrair outros anéis, a ponto de, por vezes, formar-se uma cadeia longa de anéis e de pedaços de ferro, pendentes uns dos outros; e todos tiram essa força da pedra. Do mesmo modo (houtó), as Musas deixam os homens inspirados (entheous), comunicando-se o entusiasmo destes a outras pessoas, que passam a formar cadeias de inspirados (enthousiazónton). Porque os verdadeiros poetas, os criadores das antigas epopéias (no original, hoi agathoi), não compuseram seus belos poemas como técnicos (ouk ek technes), porém como inspirados e possuídos (katexomenoi), o mesmo acontecendo com os bons poetas líricos. Iguais (hósper) nesse particular aos coribantes, que só dançam quando estão fora do juízo (ouk emphrones), do mesmo modo que os poetas líricos ficam fora de si próprios (ouk emphrones) ao comporem seus poemas; quando saturados de harmonia e de ritmo, mostram-se tomados de furor igual ao das Bacantes (hósper hai bakkhai), que só no estado de embriaguez (katexomenai) característica colhem dos rios leite e mel, deixando de fazê-lo quando recuperam o juízo. O mesmo se dá com a alma do poeta lírico, como eles próprios o relatam. Dizem-nos os poetas, justamente, que é de certas fontes de mel dos jardins e vergéis das Musas que eles nos trazem suas canções, tal como as abelhas, adejando daqui para ali do mesmo modo (houtó) que elas. E só dizem a verdade. Porque o poeta é um ser alado e sagrado (pténon kai hieron), todo leveza, e somente capaz de compor quando saturado de deus e fora do juízo, e no ponto, até, em que perde de todo o senso (ho nous méketi en autó ené). Enquanto não atinge esse estado, qualquer pessoa é incapaz de compor versos ou de vaticinar (poiein kai khrésmódein). Porque não é por meio da arte que dizem tantas e tão belas coisas sobre determinados assuntos, como se dá contigo em relação a Homero. É por inspiração divina, exclusivamente, que cada um faz tão bem o que faz, conforme a Musa o incita: ditirambos, panegíricos, danças corais, epopéias ou iambos, revelando-se todos eles medíocres nos demais gêneros, pois não falam por meio da arte, mas por uma força divina. Se a arte os deixasse em condições de falar bem sobre determinado gênero, do mesmo modo se expressariam com relação aos demais. Essa a razão de utilizar-se apenas deles o deus como ministro, como o faz com os adivinhos e os divinos profetas (tois mantesi tois theiois), para que os ouvintes nos capacitemos de que não são eles os que nos contam tantas coisas miríficas, visto se acharem privados da razão (hois nous mé parestin), mas o próprio deus que conversa conosco por intermédio deles (all’ ho theos autos estin ho legón).”[1]

[tradução do carlos alberto nunes, modificada por mim em 1996, para o projeto de mestrado com o benjamin]

[1] PLATÃO, Íon, 533c9-534d4

assalto

ASSALTO

PERSONAGENS

José Maria Maia - 33 anos, cabelos e olhos escuros, barba bem-aparada, estatura média, corretor de seguros, bem de vida.

Sílvia Maia - 29 anos, cabelos pretos, lisos, na altura da nuca, olhos verdes, pele clara, dona-de-casa, “sempre quieta, sempre alerta”, nas palavras de seu marido Zemaria.

Pedro Maia - três anos mais novo que seu irmão, foi seu rival na disputa por Sílvia. Sua cabeleira negra é vasta e rebelde; seu corpo, atlético. Mulherengo, trocista, sempre acompanhado de um copo e um cigarro. É formado em arquitetura, mas sua paixão é o futebol.

D. Angélica Rebouças - Carioca da Tijuca, mora com a filha Sílvia desde que enviuvou, há um ano e meio. Cabelos brancos, como os olhos, vítimas de catarata. Surda. Não esconde a preferência, entre os irmãos, por Pedro.

Beth Vieira - amiga de infância de Sílvia, não é muito bonita, mas é sexy. Já namorou Pedro. Loura oxigenada, tão falante quanto fútil. Tem muito carinho pela amiga, por quem acredita estar apaixonada.

Maria do Carmo - diarista dos Maia. Mulatinha de 18 anos, muito vaidosa, vive se engraçando com Pedro. Tem uma filha de dois anos que deixa na creche antes de ir para o trabalho.

Esmeralda - empregada do apartamento vizinho, amiga de Maria do Carmo.

Bento e Glória - os assaltantes.

ATO ÚNICO

CENA ÚNICA - Sala do apartamento dos Maia, na Haddock Lobo, São Paulo. Duas e meia da tarde de sábado. Esmeralda está na porta que dá para a cozinha esperando Maria do Carmo acabar de tirar a louça do almoço. No centro, de costas, a televisão está ligada num programa esportivo, com o volume alto. À direita, Zemaria, abraçado a Sílvia, está conversando animadamente com Pedro sobre a final do campeonato, marcada para as quatro. Beth insiste com D. Angélica em levá-la ao cabeleireiro.

Zemaria - Será o jogo da década, talvez do século! Tenho certeza de que vamos nos lembrar desta tarde por muito tempo. Ainda bem que o Carlão foi expulso semana passada...

Pedro - E você acha que ele não vai jogar, que o patrocinador não vai meter o dedinho? Já deve ter metido a mão inteira mesmo...

D. Angélica - Mas minha filha, estou muito velha para isso. De quê adiantaria? Eu não enxergo nada mesmo. Deixe que não demora muito receberei minha última maquiagem...

Beth - (gritando) Não diga isso, D. Angélica! A senhora tem muito tempo pela frente. Ainda verá o homem pisar em Marte, eu garanto. Parece que os americanos já estão construindo um foguete...

Esmeralda - Vamo cum isso minina. Taca logo tudo isso drentro da máquina si não agente chega atrasada!

Maria do Carmo - Tô acabando, tô acabando, calma, a gente já vai. E é bom chegar atrasada pra deixá aqueles bandido esperano, cum fome...

(Ouve-se uma batida seca, mas forte, na porta. Maria do Carmo olha através do olho mágico e abre um pouco a porta.)

Maria do Carmo - Pois não?

Bento - (fora da cena) Por favor, senhorita. Nós somos da Igreja Evangélica Paz e Amor e...

Maria do Carmo - Se veio vender livrinho, pode dar meia-volta. Aqui ninguém compra nada.

Bento (ainda fora de cena) - Posso falar com o dono da casa?

Maria do Carmo - Ele vai te passá um isculacho... Seu Zemaria! Tem um homi aqui querendo falar com o senhor um negócio duma igreja...

Pedro - Deixa que eu vou. Em um minuto haverá mais um ateu no mundo.

( Pedro vai até a porta e ao olhar para fora fica todo contente. Cumprimenta o casal lá fora, convidando-os a entrar.)

(Entram abraçados a Pedro, Glória e Bento, este vestindo a camisa do Juventus.)

Pedro - Aí, aí!! É um presságio, um bom agouro, um milagre! É hoje, é hoje que a gente desencanta! Vou pegar uma cerveja pra vocês.

Bento - Hmmm. Não precisa dizer nada. O senhor é juventino também.

Pedro - Desde o útero, melhor, desde a pica de meu pai, com o perdão das senhoras.

(Maria do Carmo dá dois copos ao casal e Pedro começa a enchê-los.)

Pedro - Mas a quê devemos a graça desta visita? Quem são vocês, campeões?

Glória - O caso é o seguinte: nós não viemos aqui pra falar de futebol, beber cerveja, nem porra nenhuma! A gente veio pra roubar, sacou? Roubar! (Tira um revólver da bolsa e aponta na direção de todos, inclusive de Bento.)

Bento - (Para Glória) Sai pra lá! Aponta isso pra eles! (Para todos) É isso aí! Dane-se o Juventus! O que a gente quer é o dinheiro, tá entendendo, o dinheiro. E vamos logo com isso que tá quase na hora do jogo. (Bebe um gole de cerveja.)

Zemaria - Deve ser brincadeira! Vocês não vieram aqui, com a camisa do meu time, pra me assaltar! Não hoje! Senta aí que o jogo já vai começar.

Beth - Já sei! Vocês são amigos do Pedro e querem tirar uma com a nossa cara. Que piadista...

Glória - Parece que vocês não estão entendendo. (Mostra o revólver) Isso aqui não é de brincadeira, não. Eu passo fogo, tá me entendendo, eu passo fogo! Vocês duas aí! (Aponta para as empregadas) No sofá! E quietinhas, senão mando bala. O senhor aí! (Para Pedro) Onde é o cofre?

Pedro - Desculpem-me. A casa é dele. (Aponta Zemaria)

Glória - Então vai sentando aí se não quer levar chumbo. (Pedro obedece) (Para Zemaria) Então? Eu não vou perguntar de novo...

Beth - (Para Pedro) Cada uma que você me arruma... Quem são?

(Pedro não responde)

Beth - (Insinuando-se para Bento, que bebe mais um gole) De onde vocês conhecem o Pedro? Senta aqui comigo, o jogo já vai começar...

Pedro - Beth, eu nunca vi esses dois...

Bento - Que horas são?

Beth - Vinte pras quatro...

Glória - (Encosta a arma na cabeça de D. Angélica) Vou contar até três. A primeira vai ser a velha. E eu não tô brincando, não. Um, dois...

Zemaria - (reprime um sorriso) Calma! Calma! Não precisa matar ninguém, nem mesmo a velha. Nós não temos cofre, usamos cartão de crédito. Não temos nada, podem procurar.

Sílvia - Olhem! Eu tenho um relógio, podem levar.

Zemaria - Peraí, Sil! Que negócio é esse? Não é porque esse cara torce pro Juventus que...

Bento - (pega o relógio e vê a hora) Será que o Carlão joga?

Zemaria - Se jogar é marmelada, eu quebro tudo! O cara é um assassino!

Glória - Assassina serei eu se vocês continuarem com isso!

Bento - Olha, amor. Por que a gente não deixa o assalto para depois do jogo. A gente assiste aqui com eles, depois assalta e vai embora.

Zemaria - Isso! E com o caneco na mão! (Abraça Bento)

(Glória aponta o revólver para a televisão)

Zemaria e Bento - Nããão!!

Beth - (Aproxima-se de Sílvia e põe-lhe a mão no joelho) Você está com medo? Chega aqui mais perto de mim. (Do outro lado Pedro senta mais perto de Sílvia e também põe a mão em seu joelho)

Sílvia - Parem com isso! (Tira as duas mãos de seus joelhos) Eu não estou com medo! Olhem! O jogo começou.

(Todo mundo se vira para a televisão)

Esmeralda - (Para Maria do Carmo) Que jogo é esse hein? Que assalto mais demorado! (Para Glória) Ô moça! Eu posso ir embora? Eu não tenho nada comigo, não moro aqui, não gosto de futebol...

Maria do Carmo - Eu também. Preciso pegá minha filhinha na creche, meu namorado tá mi esperano. Afinal, já deu minha hora faiz tempo!

Bento - Silêncio!!! Eu quero ver o jogo! E meu copo está vazio.

Maria do Carmo - Eu num vô pegá nada. Já deu minha hora mesmo.

Zemaria - Sil! Vai buscar mais uma cerveja pra gente.

Glória - Não! Ela não. Vai o grandão aí, que é meio bobo. (Pedro se levanta) Mas cuidado, hein! Sem gracinha que eu tô de olho! (Pedro sai e volta com a garrafa. Vai colocar no copo de Glória. Só aí ela percebe que ainda está com o copo cheio na mão.) (Glória atira o copo no chão. Todos se voltam para ela, menos Bento.)

Bento - (Vibrando com a tv.) Vai, vai, vai, vai, droga! Burro! Idiota!

Pedro - (Baixinho.) Desculpe.

Zemaria - Mas como pode o bandido do Marcão estar jogando?

Bento - É uma roubalheira só! Time grande é foda! É uma luta de Davi contra Golias.

(Glória dá um tiro para cima. Pedro derruba o copo. Maria do Carmo começa a rezar.)

D.Angélica - Foi gol?

Sílvia - (Para Glória.) Calma. Você está nervosa demais. Vou pegar um pouco de água. Sente-se aqui no meu lugar...

Glória - (Lamentando-se.) Maldito hospício em que vim cair. (Senta-se. Pedro se afasta o mais possível. Beth se aproxima um pouco, olhando o rosto da ladra.)

Beth - (Para Glória.) É, ela tem razão. Calma que daqui a pouco o jogo acaba e... (Põe a mão no joelho de Glória.)

(Glória olha assustada a mão que acaricia seu joelho. Levanta-se num pulo e, tremendo, vira a arma na direção da cabeça de Beth. Dá, desesperada, um tiro que pega na parede, muito longe.)

D.Angélica - Outro?

(Sílvia dá um copo com água para Glória. Esta bebe num gole só e atira o copo longe.)

Glória - Mas o que eu estou fazendo? Fiquei louca também? Daqui a pouco pergunto quanto está o jogo. (Olha para Bento e Zemaria, ainda em frente da tv, quase interessada. Senta-se de novo no sofá, leva a mão com a arma à cabeça.) Não estou me sentindo muito... (Desmaia em cima de Pedro, que levanta com um grito, jogando Glória no chão. Rapidamente, Sílvia pega o revólver e mira em Bento, chamando-o. Ele demora um pouco para se virar.)

Sílvia - Fora! Carregue essa maluca! Fora os dois! Fora de minha casa!

Bento - Minha Glória! Você matou minha Glória!

Zemaria - Pst!

Bento - (Para Zemaria) Que foi? Aconteceu alguma coisa?

(Glória dá três tiros.)

D.Angélica - He, que é goleada!

(A televisão começa a tocar o hino do Juventus. Zemaria e Bento se abraçam emocionados e cantam junto. Pedro arrisca se aproximar e logo cai na festa também. Beth se ajoelha perto de Glória e passa a mão em seus cabelos. As duas empregadas saem de fininho. Sílvia, com a arma ainda na mão, chora desconsolada no colo de sua mãe.)

[escrevi em 1998, lsd]