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quinta-feira, 14 de abril de 2011

sereias

"Assim a crítica posterior indaga sobre a verdade cuja chama viva continua a arder sobre os pesados troncos do passado e as leves cinzas da vida que se foi."

"O belo ensaio de Horkheimer e Adorno sobre o Iluminismo contém uma das mais conhecidas interpretações do mito das sereias, descrito no Canto XII da Odisséia. Nele os autores situam o dilema colocado para o homem ocidental pelo Esclarecimento: a alternativa de arrancar a existência à natureza, que exige atenção sempre alerta e voltada para o presente , e a tentação de voltar ao passado pela poesia, representada na narração homérica pelo canto das sereias. Odisseu, o herói sofrido, descrevem os autores, enrijecera sua identidade entre perigos, e quando a "maré do passado refluiu da roca do presente" e "um futuro nublado carregou o horizonte", Odisseu foi obrigado a trocar todos os sonhos por um só sonho: a volta à Ítaca natal. Seu passado está imerso no reino das sombras. Enquanto renuncia a se valer como conhecimento, fechando-se para a práxis, o prazer e a memória são tolerados. Mas o poder das sereias é forte: o da poesia aliada ao conhecimento, pois elas sabem de "tudo o que se passou na fértil terra". As sereias cantam a memória da qual Odisseu e seus companheiros foram protagonistas: "tudo o quanto argivos e troianos sofreram na arrasada Tróia pela vontade dos deuses." Mas a presença de espírito constante é uma exigência da realidade, única maneira de arrancar a frágil existência da dura natureza. Nenhum imigrante, nenhum desterrado, ninguém que luta pela sobrevivência, pode ser nostálgico: "a promessa do retorno é o engano por onde o passado captura o saudoso".
"Odisseu fora prevenido por Circe, a grande maga; e como Ulisses resistiu ao seu amor, Circe deu-lhe o poder de resistir às sereias. Dizem-nos Adorno e Horkheimer que a renúncia à sedução foi o preço que a humanidade teve de se infligir, as terríveis violências necessárias para o surgimento do homem iluminista, prático, alerta, cujos sonhos foram reduzidos ao sonho do futuro, como Odisseu, o herói errante. Esse é o caminho que todo homem deve refazer desde a infância. O caminho da civilização exige obediência e trabalho, sobre o qual a satisfação "reluz apenas como miragem, como beleza esvaziada de força". "Inimigo da morte e da própria felicidade", para Ulisses havia apenas duas soluções. A primeira Ulisses prescreve aos companheiros. Ele tapa-lhes os ouvidos com cera e manda remar obsessivamente. Só pode resistir à tentação quem não puder escutá-la. Saudáveis e concentrados, os trabalhadores, movidos pela necessidade, devem "olhar para frente e deixar para trás e para o lado o que ficou para trás e para o lado". Só "assim eles se tornam práticos". A outra saída é a escolhida por Ulisses: ele escuta, mas atado ao mastro, privado de força, de poder e de vontade. Quando gritou desesperadamente para que os marinheiros o libertassem, eles não podiam mais escutá-lo: os companheiros sabiam do perigo do canto, mas não de sua beleza. Eles obrigam o opressor a reproduzir a opressão na sua própria vida, porque Ulisses "não pode mais fugir de seu papel social". A memória é neutralizada na arte, e a arte é separada definitivamente da vida e da prática. O acorrentado ao mastro significará daí por diante a passividade do espectador, a imobilidade com que se assiste ao concerto, ao filme, ao drama, ao programa de TV, ao espetáculo, atado à cadeira, passivo - o grito apaixonado pela libertação é abafado pelo aplauso. Essa foi a vingança de Circe: a memória não é matéria de conhecimento, nem de prazer, nem de trabalho. Os que fazem não podem gozá-la, porque têm seus sentidos obstruídos pela violência, pela coação, pelo desespero da necessidade. O servo permanece subjugado, mas enreda o senhor nas malhas que o prendem." (A Escola, a Memória e o Mito das Sereias, por Maria Cecilia Cortez Christiano de Souza, da Faculdade de Educação da USP)