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domingo, 13 de junho de 2010

ontologia do golaço

O comentarista de futebol Paulo Cesar Vasconcelos costuma dizer que “não existe golaço de bola parada” – há, quando muito, gol bonito. O tema é controverso, mas não admite relativismos. Para se decidir sobre ele é preciso retroagir ao fundamento e chegar a conhecer antes o que é o golaço. Uma tal ontologia do golaço conduz, por sua vez, à questão entre todas primordial, a saber, a ontologia do próprio futebol.
Que critério, não formulado, preside o juízo que afirma não haver golaço de bola parada? Trata-se, seguramente, do critério da facilidade: ao cobrar uma falta, um pênalti ou um escanteio o jogador está em condições “ideais” para a realização da jogada, isto é, dispõe de tempo e espaço para posicionar o corpo, caprichar na mira, bater na bola etc. Mas por que a facilidade é um fator negativo, ou seja, por que ela atenta contra o golaço? Aqui já se deve lançar a palavra que encerra toda a ontologia do golaço: a necessidade. Eis precisamente a fórmula que resume a lógica em questão: a beleza do gol é inversamente proporcional ao grau de arbitrariedade que nele ocorre. Isso é confirmado pelo fato, indisputável, de não haver golaço, nem mesmo gol bonito, quando a trajetória da bola é desviada, sem intenção, em seu caminho em direção ao gol. Pela mesma razão, isto é, ausência de intencionalidade, não pode haver, exceto em sentido irônico, “golaço contra”. (...)
A facilidade é um fator negativo porque esvazia a necessidade na medida em que esta é mais impactante quando surge, linha de sentido riscando o caos, em meio ao frêmito de movimentos e direções múltiplas e indefinidas dos jogadores e da bola enquanto esta está em jogo. A bola parada surge, ela mesma, de uma interrupção do fluxo desordenado, instaurando uma ordem, uma lei, portanto uma espécie de necessidade. Fazer surgir, como no gol de falta, uma necessidade de um contexto necessário é menos surpreendente que o surgimento da necessidade, iluminadora, no meio da rede confusa do aleatório, que a necessidade deslinda e esclarece como se desfaz um nó. Logo se vê que está em jogo uma dialética cerrada, em que a necessidade enquanto fator positivo, isto é, o que faz de um gol um golaço, é ao mesmo tempo uma imprevisibilidade: trata-se de uma necessidade imprevista, que se opõe à necessidade previsível das regras, das convenções, da lei. A necessidade imprevista deve ser pensada, portanto, como harmonia, criação elaborada, algo como a “finalidade sem fim” kantiana. (...)
Ocorre que a trajetória, distância em que se vislumbra a necessidade (a beleza da linha ou da curva exatas), é também a distância onde espreita o acaso. Aqui outra regra: o acaso é diretamente proporcional à distância percorrida pela bola. E mais uma: o acaso é diretamente proporcional à distância percorrida pela bola. E mais uma: o acaso é diretamente proporcional à velocidade aplicada no chute (quanto mais forte se pega na bola, menor o controle sobre sua direção, maior a chance de mandá-la “pra arquibancada”). (...)
Assim, deve-se concluir que realmente não existe golaço de bola parada, tanto pela facilidade (que esvazia a imprevisibilidade do necessário), quanto e sobretudo pela intervenção do acaso (que se opõe diametralmente ao necessário). É por isso que o gol “olímpico”, conquanto imprevisível, não é propriamente belo, antes uma espécie de aberração, um gol freak: suspeita-se sempre de falha do goleiro, de que o gol foi sem querer, de que o zagueiro podia ter cortado, ou a bola batido na trave etc. O gol olímpico não é nem bonito, nem feio, é um ser híbrido, claro e confuso, a bela e a fera ao mesmo tempo. (...)
Tudo isso explica ainda um fato bastante curioso: que o gol que Pelé não fez, ao chutar uma bola do meio de campo que passou rente à trave do goleiro adversário, é tido como mais belo do que outros gols em chutes da mesma distância. Pois no não-gol de Pelé a evidência do acaso – o quase, o por-um-triz – chama a atenção pela beleza oculta da necessidade, enquanto que nos gols efetivos dá-se o contrário, a evidência da precisão chama a atenção para a margem de acaso oculta no lance. Os não-gols de Pelé são célebres por isso: martirizam a necessidade.
Da equação, inversamente proporcional, entre necessidade e distância deduz-se a relação íntima entre a necessidade e o drible. Com efeito (e sem trocadilho), o drible é a jogada em que o acaso está mais controlado. (...) Trata-se de uma milimetria da necessidade. Não há acaso na pedalada, só um falso bolero: um pra lá, outro pra cá. O drible nunca é sem querer; precisamente, quando se dá uma “caneta” no adversário e a bola bate no tornozelo deste, sobrando por sorte para o driblador completar o drible, a beleza do lance está comprometida. O drible não é, como se pensa, o barroco do futebol, seu excesso e gasto, seu não-objetivo, antes realiza, mais perfeitamente que qualquer outra jogada, a essência do futebol: a limpidez do necessário. O drible dribla o acaso. É este seu marcador ontológico. Não lhe deixa espaço e tempo. É o máximo da beleza. E é por isso, finalmente, que o gol de Maradona contra a Inglaterra, nas quartas-de-final da copa de 1986, driblando meio time, é com razão chamado de “o gol do século”. O golaço dos golaços, a suprema antologia da ontologia: ofereceu ao mundo a apoteose da necessidade.
(BOSCO, Francisco. Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. Pp. 173-179)