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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

luis fernando verissimo

"Incidente na casa do ferreiro

"Pela janela, vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho. Dois ou três olham o rabo do vizinho mas a maioria cuida do seu. Há também um estranho moinho, movido por águas passadas. Pelo mato, aparentemente perdido – não tem cachorro – passa Maomé a caminho da montanha, para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado e o ferreiro tomam chá.
Ferreiro – Nem só de pão vive o homem.
Filho do enforcado – Comigo é pão, pão, queijo, queijo.
Ferreiro – Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão. Cuidado.
Filho do enforcado – Por quê?
Ferreiro – É uma faca de dois gumes.
(Entra o cego.)
Cego – Eu não quero ver! Eu não quero ver!
Ferreiro – Tirem esse cego daqui!
(Entra o guarda com o mentiroso.)
Guarda (ofegante) – Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.
Cego – Eu não quero ver!
(Entra o vendedor de pombas com uma na mão e duas voando.)
Filho do enforcado (interessado) – Quanto cada pomba?
Vendedor de pombas – Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60 o par.
Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) – Não me mostra que eu não quero ver,
(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando sobre o telhado de vidro da casa.)
Ferreiro – Este cego está cada vez pior!
Guarda – Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem com uma corda.
Filho do enforcado (com raiva) – Na minha casa você não diria isso!
(O guarda fica confuso mas resolve não responder. Sai pela porta e volta em seguida.)
Guarda (para o ferreiro) – Tem um pobre aí fora que quer falar com você. Algo sobre uma esmola muito grande. Parece desconfiado.
Ferreiro – É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus, mas acho que exagerei.
(Entra o pobre.)
Pobre (para o ferreiro) – Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor me deu. O que o senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar...
Ferreiro – Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.
Cego – Eu nem quero ver...
(Entra o mercador.)
Ferreiro (para o mercador) – Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar o mentiroso com uma... (Olha para o filho do enforcado.) A amarrar o mentiroso.
Mercador (com a mão atrás da orelha.) – Hein?
Cego – Eu não quero ver!
Mercador – O quê?
Pobre – Consegui! Peguei uma pomba!
Cego – Não me mostra.
Mercador – Como?
Pobre – Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.
Mercador – Hein?
Ferreiro (perdendo a paciência) – Me dêem uma corda.
(O filho do enforcado vai embora, furioso.)
Pobre (para o ferreiro) – Me arranja um espeto de ferro?
Ferreiro – Nesta casa só tem espeto de pau.
(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do enforcado, e pega na perna do mentiroso. O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas voam pelo buraco no telhado.)
Mentiroso (antes de sair) – Agora quero ver aquele guarda me pegar!
(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás.)
Ferreiro – Como é que você entrou aqui?
Último – Arrombei a porta.
Ferreiro – Vou ter que arranjar uma tranca. De pau, claro.
Último – Vim avisar que já é verão. Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora.
Mercador – Hein?
Ferreiro – Não era andorinha, era pomba. E das baratas.
Pobre (para o último) – Ei, você aí de um olho só...
Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) – Meu rei.
Mercador – O quê?
Ferreiro – Chega! Chega! Todos para fora! A porta da rua é serventia da casa!
(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à parede. Mas o último protesta.)
Último – Parem! Eu serei o primeiro.
(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás.)
Cego – Meu rei! Meu rei!"