novo blog

sábado, 9 de outubro de 2010

marilena chaui (sobre livro de bucci e kehl)

"(...) as análises de "Videologias" [BUCCI, Eugênio. KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. ed. Boitempo, 1994] são feitas sob uma perspectiva precisa, qual seja, os processos de instituição mítica das significações, graças ao deslizamento contínuo dos significantes. A mídia seqüestra as significações estabelecidas, tanto cristalizando-as em alguns significantes fixos quanto dissolvendo-as em significantes instáveis. Apanhando as significações histórica e socialmente instituídas, ora pode fixá-las como bases de um código de valores (bem e mal, belo e feio, justo e injusto, possível e impossível) que é devolvido e imposto à sociedade por uma instância que parece transcendê-la; ora pode alterá-las segundo critérios do mercado da moda, do mercado político, do mercado militar e outros. No primeiro caso, a fixação leva à naturalização das significações; no segundo, à sua flutuação permanente.
Produzindo a adesão a todas elas, não apesar, e sim graças a essa oscilação das imagens entre o eterno e o efêmero, a mídia produz videologias, a forma contemporânea do mito. A operação mítica, no caso da televisão brasileira, é realizada pelo que Eugênio Bucci designa como dueto entre fato e ficção, quando a realidade dos noticiários aparece como ficção, e a ficção das telenovelas aparece como realidade, pois ambos se inscrevem no registro do entretenimento. Quando bem-sucedida (e tem tido sucesso), a operação mítica obtém o que Maria Rita Kehl designa como passagem da produção da identificação à da identidade -a tela da televisão não oferece modelos a imitar, mas se oferece como espelho no qual acreditamos estar refletida nossa própria imagem.
Ora, isso significa também que a instituição dos espaços-tempos públicos pelos meios de comunicação, sobretudo pela televisão, é um ato de poder. Não o poder tal como estamos acostumados a pensá-lo quando fazemos a crítica da mídia, isto é, como ação de agentes determinados que deliberam sobre seu próprio agir em vista de conseguir dominação. Mudando o registro costumeiro das análises sobre a mídia, os autores nos fazem compreender que o poder midiático é um "mecanismo de tomada de decisões que permitem ao modo de produção capitalista, transubstanciado em espetáculo, sua reprodução automática".
Em outras palavras, o sujeito do processo não são os proprietários dos meios de comunicação nem os Estados nem grupos e partidos políticos, mas simplesmente (e gigantescamente) o próprio capital. Dessa maneira, os autores se libertam e nos libertam de uma atitude maniqueísta e simplista sobre a forma, o conteúdo e o sentido do poder midiático. Sem dúvida, não negligenciam o poder econômico dos grupos proprietários nem a tendência oligopólica desse poder no Brasil assim como não negligenciam o poder desses grupos para determinar efeitos políticos (como, por exemplo, resultados eleitorais) ou para ocultar fatos sociopolíticos (como, por exemplo, massacres e chacinas em larga escala). No entanto a profundidade da análise consiste justamente em mostrar que essas ações exibem poder, mas não o constituem, pois sua constituição precisa ser procurada no modo de produção do capital.
Trata-se, pois, de decifrar o poder videológico. Para isso, colocando-se num patamar de análise novo, os autores procurarão decifrar a imagem e o imaginário (produzido pelo fluxo das imagens), tomando como referências conceituais as análises de Freud e Marx sobre o fetichismo. Por que essa referência? Porque os autores não se contentam em retomar análises que salientam as operações midiáticas como ações que visam ao desejo, mas buscam o modo de produção do imaginário contemporâneo pela compreensão crítica da imagem enquanto imagem, seja no nível do inconsciente individual, seja no nível do inconsciente social. Psicanaliticamente, o fetiche é um objeto imaginário por meio do qual ocultamos uma perda e uma falta intoleráveis -o fetiche é o objeto mágico de satisfação do desejo pela denegação da perda e da falta e por isso mesmo exprime a impossibilidade de lidar com a ausência e com a alteridade (ou a impossibilidade de passar da imagem ao símbolo). Marx, por sua vez, elaborou o conceito de fetichismo da mercadoria para descrever o processo social de inversão da realidade social, isto é, o fato de que no modo de produção capitalista, em lugar das relações sociais serem relações entre sujeitos mediadas pelas coisas, elas são relações entre coisas mediadas pelos sujeitos. Ou, melhor, as mercadorias são fetiches porque parecem ter vida própria, personificam-se, enquanto os indivíduos que as produziram se tornam peças de uma engrenagem produtiva, se coisificam e se relacionam entre si como mercadorias que produzem mercadorias.
Entretanto os autores dão um passo importante ao introduzirem a diferença histórica, ou seja, as análises de Freud e de Marx se referiam a uma sociedade do trabalho na qual o gozo e a satisfação deviam ser reprimidos para a manutenção da ordem social, mas se trata, agora, de retomar o fetichismo numa sociedade do consumo e do espetáculo na qual o gozo e a satisfação se tornaram imperativos sociais e morais. É nesse novo tempo histórico que os autores redefinem o fetiche e sua instituição videológica e podem nos oferecer uma compreensão inteiramente nova de duas questões ético-políticas cuja discussão tem sido sistematicamente simplificada: a da violência e a da verdade/mentira. Não queremos antecipar o conteúdo dessas análises e privar o leitor do impacto que elas certamente terão sobre ele quando, por exemplo, descobrir que a publicidade não inclui, mas exclui, ou que o obsceno nos "reality shows" não está no voyeurismo do espectador, e sim no exibicionismo dos participantes, ou que uma ética da solidariedade só pode supor-se realizando o bem porque tem como pressuposto necessário o mal, isto é, a desigualdade e injustiça sociais sem as quais parece não haver apelo a ações solidárias, as quais, enquanto imagens e, portanto, espetáculo, possuem valor de mercado e instituem a solidariedade no espaço do marketing."
(Prefácio de Marilena Chaui ao livro 'Videologias', de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl, publicado pela Folha de SP em 20/06/2004)