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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

cinema (texto)

Hollywood e boa parte da mídia contemporânea (televisão, TV a cabo, jornais, revistas, internet...) tentam insistentemente nos convencer de que cinema é puro entretenimento, sem grandes conseqüências. Mas existem outros pontos de vista que, embora minoritários, nos permitem descobrir que podemos aprender muito até mesmo com a distração.

Nos anos de 1930, quando a multiplicação das imagens ainda não havia invadido todos os espaços públicos e privados, o filósofo alemão Walter Benjamin escreveu num ensaio famoso que o cinema era muito importante porque tinha uma tarefa histórica: mudar a nossa percepção da realidade, fazendo-nos ver, com as máquinas, como elas estavam transformando a vida cotidiana e toda a vida social. Segundo ele, tal mudança em nossa percepção se opera por meio do choque: “Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira, a imagem se move, mas na segunda, não. Esta convida o espectador à contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do filme isso não é mais possível. Mal o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. Ela não pode ser fixada, nem como quadro nem como algo real. A associação de idéias do espectador é interrompida imediatamente com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfego, e como as que experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente.”

Para o filósofo, a experiência do cinema é, portanto, uma operação de risco que nos ensinaria a ficar atentos, como a que o indivíduo corre nas ruas das metrópoles ou que correm os revolucionários na luta social. Em poucas palavras: com um tratamento de choque, o cinema interceptaria os pensamentos habituais do homem moderno, ensinando-o a “ler” a sua realidade. No cinema este faria o aprendizado da vida na nova sociedade.

Setenta anos depois, seria o caso de nos perguntarmos se o cinema ainda pode ser visto como uma terapia de choque atuando nesse sentido. Isto é, se ainda tem um potencial revolucionário capaz de impactar nossa experiência e nos fazer aprender. Como professor de sociologia da tecnologia que utiliza o cinema em suas aulas, só posso dizer que sim. Mas minha terapia de choque é um pouco diferente da de Benjamin: quero chocar os estudantes para arrancá-los de sua exposição passiva à onipresença da mídia, levando-os a descobrir não o que se pode fazer com as imagens, mas o que elas fazem com a gente; quero que tenham uma outra experiência das imagens: não o choque da distração, mas o da concentração, da atenção voltada para a relação entre os homens e as máquinas produtoras de imagens.

Minha questão é: como fazer os jovens de 20 anos perceberem que, ao contrário do que pensam, sua percepção não é natural, mas construída pelo contínuo fluxo de imagens industrializadas? Em meu entender, a melhor maneira é criando um intervalo dentro da cabeça deles, isto é, mostrando-lhes filmes que rompem com o esquema dominante e discutem o papel da tecnologia em nossas vidas. Trata-se, em suma, de deslocar o olhar do espectador, para que ele, em vez de mero receptáculo de imagens, experiencie a aventura de pensar com elas e, eventualmente, contra elas.

(SANTOS, Laymert Garcia dos. Práxis 5: ensaios – paz, cidadania, cultura, violência, liberdade, trabalho, educação pública. Com apresentação de Roberto Romano. Textos originalmente publicados na Revista E do Sesc São Paulo, em setembro de 2002. São Paulo: Sesc São Paulo; Lazuli, 2003. pp. 23-24.)