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domingo, 27 de fevereiro de 2011

scliar

Em Os Leopardos de Kafka, Moacyr Scliar desenha um caricato comunista russo atrapalhado, chamado de “Ratinho”, que elabora páginas e páginas de interpretações imbecis sobre um parágrafo de texto de Kafka, o qual chega às suas mãos através de um qüiproquó, rotineiro nas peças de um Martins Pena, por exemplo:

Era complicado, aquele Kafka. Se pudesse, Ratinho pegaria o telefone e se queixaria: “Não entendo o que você escreve, camarada Kafka. Sinto muito, mas não entendo. Talvez o seu texto represente um novo estágio na literatura, um estágio que escapa ao alcance da maioria das pessoas. Mas permita-me perguntar, camarada: o que escapa ao alcance das pessoas – é revolucionário? Veja o meu caso. Não sou um intelectual, sou uma pessoa simples, um judeuzinho de aldeia que acredita na revolução como forma de mudar a sua vida e a vida de sua gente – não tenho direito a textos que me digam alguma coisa, que me transmitam uma mensagem progressista? Judeuzinhos de aldeia também são gente, camarada, também precisam de livros. Faça sua autocrítica e pense neles na próxima vez que escrever algo como este seu Leopardos no Templo”.[1]

Vazado em linguagem coloquial, o clímax do livro de Scliar é atingido quando Ratinho, já no Brasil da Ditadura Militar, é interrogado no Dops por um delegado de proverbial ignorância:

- Os agentes acharam um documento com ele, um documento escrito em alemão e assinado por um tal de Kafka. Este documento aqui.

Mostrou a Ratinho o texto de Kafka.

- Tu sabes quem é esse cara?

- Sei – disse Ratinho. – É um escritor. Já morreu, mas eu o conheci quando morava na Europa. Ele mesmo me deu esse texto.

- Um escritor? – O delegado, ainda desconfiado. – Nunca ouvi falar nesse escritor.

Uma idéia lhe ocorreu:

- Espera um pouco. Nós temos um investigador que é metido a literato. Vamos ver se ele sabe alguma coisa.

[...]

- Me diz uma coisa, Ratinho. A gente se conhece há muito tempo, eu sei que tu lês muito. Tu gostas desse tipo de escrito?

- Não – disse o Ratinho. – Acho uma merda.

- Não é? – O delegado, triunfante. – Não é mesmo uma merda, um troço incompreensível? Leopardos no templo... Quem é que quer saber de leopardos no templo? Isso aí não tem pé nem cabeça. Para mim, não passa de uma bobagem, de uma coisa maluca. Queres saber de uma coisa, Ratinho? Que se fodam, esses leopardos no templo.[2]

O texto em questão, os “Leopardos no Templo”, tratava-se de um original – evidentemente apócrifo, porque escrito pelo próprio Scliar – datilografado por Kafka, e por ele assinado, que acabou parando nas mãos do protagonista Ratinho, e com ele ficou durante algumas décadas. Valeria “pelo menos oito mil e quinhentos dólares”[3], segundo Ratinho, na época, em 1964. Para além da lembrança do valor do papel, e escudado por uma de tantas explicações didáticas contidas no livro, o leitor saberá também que “Kafka destruía quase sempre todos os seus escritos. É por isso que esse texto é uma raridade – e vale o que vale”[4].

Mais uma vez cristaliza-se a prática de atribuir determinado texto a um autor que não o escreveu, procedimento que remonta a O Nome da Rosa – assim como o destino desse pedaço de papel, que não é grandiosamente consumido por um incêndio em alguma biblioteca monumental, pois a ação se passa no Dops, mas, muito mais prosaicamente, é rasgado em pedacinhos pelo delegado e jogado no cesto do lixo, já que Ratinho mesmo dissera e repetira que era “uma merda”[5].

(trecho de minha tese de doutorado, defendida em 2006.)

[1] SCLIAR, 2000, p.54.

[2] SCLIAR, 2000, pp.111s.

[3] SCLIAR, 2000, p.104.

[4] SCLIAR, 2000, p.105.

[5] SCLIAR, 2000, p.113.