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quarta-feira, 30 de março de 2011

romano, orlandi e müller

No primeiro semestre, Romano dava uma disciplina sobre Descartes. Ia lendo e comentando o texto das Meditações, e às vezes trazia exemplos, como um livro de arte importado sobre anamorfoses, que deixou emprestado com uma colega da sala, depois de fazer diversas recomendações e advertências sobre como manuseá-lo. Evidentemente não se poderia xerocá-lo, pois era quase que apenas de imagens de anamorfoses na história da arte. Mostrou-nos uma impressionante, para que víssemos enquanto o livro circulava na sala (com as cadeiras e o birô dispostos em um círculo perfeito) do pintor Holbein, do século XVI, que colocou, no centro do quadro, um longo pedaço de pão, que, se visto da forma exata, com os olhos perto da imagem, inclinada uns 45 graus, transformava-se numa caveira. A avaliação da disciplina eram paráfrases do texto das Meditações, que íamos fazendo à medida em que o texto ia sendo lido nas aulas.

Houve uma vez, logo no primeiro semestre, em que ele começou a aula muito alterado, a custo segurando uma onda de ódio que tinha tomado desde que lera um dos trabalhos avaliativos feitos pela classe. Sem revelar nada da pessoa que teria feito tal trabalho, vários de nós, em silêncio durante os comentários de romano, nas rodinhas no intervalo da aula, não tínhamos a menor noção do que tinha acontecido, embora um arrepio de desconfiança em cada um de nós que de que fôssemos nós que, sem querer, tenhamos despertado a fúria do professor. Ficávamos repassando mentalmente trechos do trabalho de cada um de nós, que era uma paráfrase do texto de Descartes. Pelo que deu pra entender, um aluno tinha elogiado as aulas do professor, que eram realmente excelentes!, e o romano achou que o cara estava sendo irônico com ele. Depois do intervalo, um aluno pediu a palavra e disse que tinha escrito aquilo com honestidade, pois estava gostando muito mesmo das aulas do professor, que em momento nenhum sequer passou pela cabeça dele que isso poderia ofender romano, mas o professor manteve sua ira e seu desdém, claramente injustiçando nosso colega (que, aliás, tinha um adesivo do maluf no carro, fato que já havia intrigado todo mundo). Esse cara abandonou o curso, a unicamp e possivelmente a filosofia, depois desse dia.

Em 92 e 93, Romano trabalhou o Tratado-Teológico Político, de Espinosa, um livro nem um pouco óbvio. Se fosse hoje, eu teria gravado as suas belas aulas. Os paralelos com a política brasileira do momento eram constantes e ele sabia mostrar e evidenciar os trechos interessantes do livro de Espinosa.

Luiz Orlandi era certamente o maluco assumido do Departamento. Suas aulas eram meio caóticas, pedia um trabalho de até 10 páginas e, no finzinho do semestre se trancava em sua sala e voltava meia-hora depois, com os resultados da turma toda. Como ele era um dos que não sabia em absoluto o nome de cada aluno, percebemos que ele dava uma olhada no trabalho e atribuía a nota meio que conforme o número de páginas apenas (de 5 a 10). Eu sempre tirava seis. Foi meu primeiro contato com Deleuze, na disciplina em que lemos o Proust e os Signos, cuja sequência ele interrompeu porque ficou chateado com comentários sobre o fato dele ser ‘o deleuziano do departamento’, e nos semestres seguintes trabalhou com o ‘Tratado sobre a Natureza Humana’, de Hume, que não tinha tradução para o português na época (o original em inglês ele conseguiu com o Fausto Castilho).

A aula do professor Marcos Müller era ler o texto de Kant ou, depois, Hegel. Com as traduções que ele fizera, que nos entregava datilografadas em pequenas apostilas para xerocarmos, ou distribuía ele mesmo, na hora da aula, quando era algum parágrafo interessante dA Enciclopédia, de Hegel). No segundo semestre, na avaliação de um curso sobre ‘A Ideia de uma História Universal através de um Ponto de Vista Cosmopolita’, ele nos deu um parágrafo da Crítica do Juízo, de que eu nunca tinha ouvido falar, e hoje percebo a sua beleza, nesse parágrafo determinado; as questões são fracas, burocráticas pra averiguar se sabíamos escrever. Eu passava com por volta de 7,0.

Müller era o único dos professores (da Filosofia e do IFCH inteiro, exceto Lucas) que regularmente ia aos concertos da Orquestra Sinfônica de Campinas. Sempre foi muito cordial, como qualquer brasileiro que se preza. Apesar da ascendência alemã muito forte e de ser marido da bela francesa Jeanne-Marie Gagnebin, professora de Platão, cujas aulas sobre o Amor inebriavam-nos. Mas isso mais tarde, 96, 97. Ela era professora de Letras, e por isso nós, da Filosofia, não podíamos assistir regularmente as suas aulas, só de vez em quando. (lsd)