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quarta-feira, 29 de junho de 2011

guimarães rosa (por joão cabral)

“Eu me lembro que Guimarães Rosa gostava de conversar comigo sobre esse negócio de fabricação da escrita. E ele me mostrava coisas que eu confesso que estranhava. Eu me lembro que quando saiu Corpo de Baile, eu estava no Itamaraty nesse tempo, e então ele me perguntou: ‘Você tá lendo?’ Eu disse: ‘Tô lendo’. ‘Em que parte você está?’ ‘Ah bom, eu não sei em que página estou’. ‘Você já passou naquele pedaço?’ É um conto muito bonito em que tem uma onça ameaçando um rebanho de gado. Então o touro fica no meio, cercado pelas vacas, e fica em pé para enfrentar a onça, se ela ousar se aproximar das vacas que ficam ao redor dele. Não estou bem lembrado, mas parece que a onça avança e o touro mete uma chifrada nela, e está claro que o sangue jorra. Ele me perguntou então: ‘Chegou naquela parte?’ ‘Cheguei’. ‘E você não viu?’. Digo: ‘Não’. Ele diz na passagem que o sangue jorra, ou sai um jato, o sangue brotou como num jato, a idéia é essa. ‘Você viu que no fim daquela frase tem um ponto de exclamação?’ Eu digo ‘Vi’. ‘A gora você não notou no livro que o ponto de exclamação está diferente?’ Eu digo: ‘Não, por quê?’ Ele disse: ‘Porque o ponto de exclamação tem um ponto antes e outro depois’ (Nota:.!.). Eu disse: ‘E daí?’ Ele disse: ‘É para dar a idéia de um jato’. Quer dizer, é um negócio fantástico, ninguém notou isso. Eu notei porque ele me chamou a atenção. Então realmente o que ele fez dá a impressão de uma fonte jorrando. Se você se fixar na tipografia, você vai pensar que aquilo é um erro de revisão. E ele fez aquilo de propósito. E o Rosa tinha dessas coisas, que ao mesmo tempo só ele compreendia, porque se ele não dissesse esse negócio... Vocês teriam notado isso?” (MELO NETO, João Cabral de. Entrevista. 34 Letras. Rio de Janeiro, n.3, março, 1989, pp.27)