novo blog

domingo, 17 de outubro de 2010

grandes momentos da filosofia (leibniz)

" [...] Respirei fundo, erguendo um pouco os ombros para engolir mais ar. Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo. Comecei a descer o morro, o quartel ficando para trás. Bola de fogo suspensa, o sol caía no rio. Sacudi um pé de manacá, a chuva adocicada despencou na minha cabeça. Na primeira curva, o Chevrolet antigo parou a meu lado. Como um grande morcego cinza.
— Vai pra cidade?
Como se estivesse surpreso, espiei para dentro. Ele estava debruçado na janela, o sol iluminando o meio sorriso, fazendo brilhar o remendo dourado do canino esquerdo.
— Quer carona?
— Vou tomar o bonde logo ali na Azenha.
— Te deixo lá — disse. E abriu a porta do carro.
Entrei. O cigarro moveu-se de um lado para outro na boca, enquanto a mão engatava a primeira. Um vento entrando pela janela fazia meu cabelo voar. Ele segurou o cigarro, Continental sem filtro, eu tinha visto, entre o polegar e o indicador amarelados, cuspiu pela janela, depois me olhou.
— Ficou com medo de mim?
Não parecia mais um leão, nem general espartano. A voz macia, era um homem comum sentado na direção de seu carro. Tirei do bolso a caixinha de chicletes, abri devagar sem oferecer. Mastiguei. A camada de açúcar partiu-se, um sopro gelado abriu minha garganta. Engoli o vento para que ficasse ainda mais gelada.
— Não sei. — E quase acrescentei meu sargento. Sorri por dentro. — Bom, no começo fiquei um pouco. Depois vi que o senhor estava do meu lado.
— Senhor, não: Garcia, a bagualada toda me chama de Garcia. Luiz Garcia de Souza.
Sargento Garcia. — Simulou uma continência, tornou a cuspir, tirando antes o cigarro da boca.
— Quer dizer então que tu achou que eu estava do teu lado. — Eu quis dizer qualquer coisa, mas ele não deixou. O carro chegava no fim do morro. — É que logo vi que tu era diferente do resto. — Olhou para mim. Sem frio nem medo, me encolhi no banco. — Tenho que lidar com gente grossa o dia inteiro. Nem te conto. Aí quando aparece um moço mais fino, assim que nem tu, a gente logo vê. — Passou os dedos no bigode. — Então quer dizer que tu vai ser filósofo, é? Mas me conta, qual é a tua filosofia de vida?
— De vida? — Eu mordi o chiclete mais forte, mas o açúcar tinha ido embora. — Não sei, outro dia andei lendo um cara aí. Leibniz, aquele das mônadas, conhece?
— Das o quê?
— As mônadas. É um cara aí, ele dizia que tudo no universo são. Assim que nem janelas fechadas, como caixas. Mônadas, entende? Separadas umas das outras. — Ele franziu a testa, interessado.
Ou sem entender nada. Continuei: — Incomunicáveis, entende? Umas coisas assim meio sem ter nada a ver umas com as outras.
— Tudo?
— É, tudo, eu acho. As casas, as pessoas, cada uma delas. Os animais, as plantas, tudo. Cada um, uma mônada. Fechada.
Pisou no freio. Estendi as mãos para a frente.
— Mas tu acredita mesmo nisso?
— Eu acho quê.
— Pois pra te falar a verdade, eu aqui não entendo desses troços. Passo o dia inteiro naquele quartel, com aquela bagualada mais grossa que dedo destroncado. E com eles a gente tem é que tratar assim mesmo, no braço, trazer ali no cabresto, de rédea curta, senão te montam pelo cangote e a vida vira um inferno. Não tenho tempo pra perder pensando nessas coisas aí de universo
— A voz amaciou, depois tornou a endurecer. — Minha filosofia de vida é simples: pisa nos outros antes que te pisem. Não tem essas mônicas daí. Mas tu tem muita estrada pela frente, guri. Sabe que idade eu tenho? — Examinou meu rosto. Eu não disse nada. — Pois tenho trinta e três. Do teu tamanho andava por aí meio desnorteado, matando contrabandista na fronteira. O quartel é que me pôs nos eixos, senão tinha virado bandido. A vida me ensinou a ser um cara aberto, admito tudo. Só não agüento comunista. Mas graças a Deus a revolução já deu um jeito nesse putedo todo. Aprendi a me virar, seu filósofo. A me defender no braço e no grito. — Jogou fora o cigarro. A voz macia outra vez. — Mas contigo é diferente.
Mastiguei o chiclete com mais força. Agora não passava de uma borracha sem gosto. [...]"
(ABREU, Caio Fernando. Sargento Garcia. In: Morangos Mofados.)