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domingo, 17 de outubro de 2010

josé arbex jr.

"SL - Por que no Brasil não há uma crítica da mídia? E, quando há, se atém ao trabalho do jornalista e não envolve as grandes corporações?

Arbex - Aqui no Brasil isso se repete de uma forma extremamente perigosa, porque com o poder da televisão sobre os telespectadores há uma confusão deliberada e ainda maior entre o que é show e o que é telenovela, entre o que é telenoticiário e o que é telentretenimento. Um exemplo é a novela O Clone, que tem por enredo o Islã. Quem assistir à novela vai ter a impressão de que conhece o Islã, de que conhece os costumes, de que sabe o que é o Islã e de como a mulher islâmica é tratada. Então eles transformaram a novela em telenoticiário sobre o Islã. Porque ninguém vai parar para pensar "o que eu estou vendo é ficção". Não; é "estou vendo o Islã". E por outro lado, o Jornal Nacional é transmitido como uma telenovela - a estrutura, a estética, a linguagem que ele utiliza. De videoclipe, diálogos rápidos, imagens panorâmicas; é bonito, agradável de se ver. Tem-se a ficção apresentada como telejornalismo e o jornalismo apresentado como teleficção. É uma total confusão de registros para 70, 80 milhões de telespectadores que vão assistir e deglutir aquilo sem fazer a crítica necessária. Com isso há aí um instrumento de manipulação.

SL - Como surgiu o livro [ARBEX JR., Showrnalismo: a notícia como espetáculo. SP: Casa Amarela, 2001], qual foi sua motivação?

Arbex - Foi a minha tese de doutorado em história na USP e surgiu como resultado de minhas observações diretas, do trabalho profissional de jornalista. E também de uma preocupação muito grande, quando houve a cobertura da Guerra do Golfo, em janeiro de 91, e a mídia mostrou pela televisão, ao vivo e em cores, uma guerra em que ninguém morreu. Uma guerra sem sangue, não teve mortos, não teve cadáver. E se dizia naquela época que os EUA tinham inventado as armas inteligentes. E na verdade sabe-se que mais de 130 mil pessoas morreram na guerra. Então a pergunta que eu fiz foi: como foi possível eles convencerem o mundo de que ninguém morreu numa guerra coberta ao vivo e em cores? Segunda pergunta: se eles convenceram o mundo disso, do que mais eles estão convencendo o mundo; quer dizer, o que mais eles estão mostrando pela televisão que nós não sabemos? E isso envolve uma terceira questão, que é a relação entre a mídia e o poder. Se eles têm o poder de mostrar o mundo do jeito que eles querem, então esse é um poder político, de manipulação das imagens, das informações. Dessas perguntas surgiu a tese.

SL - Já pelo título do livro, a primeira associação que se faz é com Guy Debord e a Sociedade do Espetáculo. O que Guy Debord signfica no seu trabalho?

Arbex - Guy Debord é fundamental. No livro A Sociedade do Espetáculo, de 67, ele justamente mostra como no capitalismo o espetáculo confere uma aparência, uma unidade para o mundo, que na verdade o mundo já não tem. Quer dizer, a vida das pessoas é fragmentária, é solitária, é isolada, é cheia de sofrimento e de angústia - mas, por intermédio da mídia, todos vivem um grande show, uma sensação de poder junto com os milionários e famosos, uma sensação de festa, como os grandes filmes de aventura, que na verdade não existe em seu cotidiano. Então a sociedade do espetáculo preenche esse vazio do cotidiano. Nesse sentido, o Guy Debord é um cara fundamental para pensar esse mundo. Só que evidentemente ele escreveu tudo isso em 67. De 67 para hoje houve uma radical diferença no sentido da evolução tecnológica. A cobertura da Guerra do Golfo, em 91, não teve nada a ver com a cobertura da Guerra do Vietnã, em 67.

SL - Em que sentido?

Arbex - No sentido de que a tecnologia conseguiu meios de digitalizar o mundo, ou seja, de transformar imagens do mundo em imagens digitalizadas que são apresentadas como se fossem imagens verdadeiras, como aconteceu na Guerra do Golfo. Eles mostraram imagens digitais dessa guerra como se fossem imagens do que realmente estava acontecendo. Isso no campo da linguagem específica do vídeo. No campo mais geral da tecnologia psicossocial houve um avanço notável na capacidade que eles têm de produzir clichês, pensamentos padrão e formas-padrão de percepção da realidade que condicionam o comportamento, orientam percepções e criam comoções de massa. Como o que está acontecendo agora no conflito do World Trade Center: desde o começo a CNN entrou na cobertura fazendo uma campanha pela guerra. Isso se vê nas vinhetas da CNN. A do primeiro dia foi "America Under Attack", como se a América estivesse permanentemente sob ataque. E a do segundo dia foi "America's New War". Quer dizer, é uma campanha pela guerra feita pela mídia. Então a mídia não informa, ela é parte desse processo, ela é um instrumento de guerra. E o Guy Debord detectou esse processo mas não viveu esse processo histórico que nós estamos vivendo hoje.

SL - Por que um trabalho como o seu só pode ser feito misturando essas várias linhas (o marxismo, a crítica da cultura e da mídia, o pós-modernismo e o conservadorismo de Martin Heidegger)?

Arbex - Para analisar esse processo de forma abrangente tem-se que levar em conta os aspectos tecnológicos, psicossociais, psicológicos, lingüísticos, materiais e a luta de classe. Daí eu ter usado uma série de referenciais. Veja no caso do Marx, por exemplo, ou dos críticos da cultura: embora a crítica da cultura marxista lance mão de conceitos freudianos em certos aspectos, não os acho suficientes.

SL - O que falta?

Arbex - Falta, por exemplo, uma maior compreensão de como a mídia usa a pulsão freudiana para hipnotizar, análise que Umberto Eco faz muito bem. Acho meio difícil fazer a crítica das imagens de guerra sem passar por Umberto Eco, que não é crítico da cultura no sentido da Escola de Frankfurt. Por outro lado, para analisar jornal e como a linguagem envolve as pessoas, acho necessários a hermenêutica e o estudo da linguagem feito pelos hermeneutas, como Heidegger. São recursos utilizados para analisar determinados aspectos da realidade que um código só não dá conta.

SL - E foi tranqüilo fazer isso dentro da universidade?

Arbex - Não. Na minha defesa de tese isso foi uma discussão muito interessante. Um dos examinadores da banca, o professor István Jancsó, disse uma frase que achei muito boa - e não por acaso eu convidei o István para fazer a orelha do livro. Ele disse: "A primeira vez que eu li a sua tese eu fiquei irritadíssimo, me causou muita irritação, porque a tese não foi escrita com o método próprio e consagrado de uma tese de história da Universidade de São Paulo." Ela não lança mão de métodos consagrados academicamente como uma pesquisa de história. Na verdade, eu faço uma leitura multidisciplinar do que está acontecendo, fazendo com que essa tese pudesse ser defendida na Letras ou na ECA, ou na História, nas Ciências Sociais. Porque tentei colocar em crise essa divisão de saberes dentro da universidade. Então ele falou: "A primeira vez que li fiquei irritado, mas aí me perguntei se minha irritação não decorria justamente de uma divisão à qual estou acostumado e que você não aceita. E aí li de novo e cheguei à seguinte conclusão: 99% dos trabalhos que eu leio estão formalmente perfeitos, mas são dissertações ocas. A sua não; não tem formalidade nenhuma, mas ali tem uma tese. E aí eu gostei." Achei que era justamente isso o que eu queria fazer: um trabalho que não ficasse restrito à divisão formal de saberes consagrada pela universidade."
(da internet, entrevista tirada do ar)